O Horto da Liberdade, em Mateus Leme, foi uma fazenda histórica onde vários funcionários da ferrovia moravam, contribuindo para o funcionamento e desenvolvimento da região com suas atividades diárias e estreita relação com o setor ferroviário.
Olá! Eu sou o Alcides de Oliveira, mas todo mundo me conhece como Cidico. Sou bastante conhecido por aqui, e tenho uma enorme paixão por essa comunidade.
Vista da área de trabalho da Fazenda Horto da Liberdade, é possível ver a serralheria, os dormentes e o trilho que os levava até a Usina de tratamento. Ao lado do trilho da fazenda estavam os trilhos que fazia o percurso da Linha Paracatu. Ao fundo é possível ver a área administrativa e as casas dos funcionários que trabalhavam na fazenda. Na área não visível a esquerda, se encontravam a Sede da Fazenda, a usina e outros pontos.
O início da Fazenda Horto da Liberdade
A Fazenda da Liberdade foi uma propriedade herdada por Dona Inácia Rosa Nogueira. Em 1904, foi a leilão e suas terras foram divididas em 23 lotes. João Gonçalves de Sousa comprou 660 hectares e manteve o nome da fazenda. Em 1944, a Rede Mineira de Viação (RMV) a adquiriu e a renomeou como Horto da Liberdade, construindo um complexo para tratar dormentes de eucalipto para a ferrovia. Esse complexo foi um experimento importante para reduzir os custos de manutenção da linha férrea, que envolvia o plantio e tratamento de eucaliptos. Além dos galpões para tratar os dormentes, havia casas para os funcionários, uma escola, hortas comunitárias, um campo de futebol e uma barragem onde os moradores do Horto da Liberdade podiam desfrutar de lazer. Também havia um ponto de parada da linha férrea na propriedade.
Depoimentos
“A Fazenda da Rede Ferroviária era como uma mãe, era o início de tudo, o coração! Porque toda a ferrovia dependia dos dormentes da Fazenda da Rede.”
Maria Aparecida Rios, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
“Eu vivi lá na Fazenda da Rede por 32 anos, porque o papai trabalhou lá, depois ele adoeceu e a gente veio para Azurita. Lá na Fazenda era muito bom, era plantação de eucalipto!”
Ilma Ribeiro dos Santos, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
Cidico
“O Cidico era um companheiro de futebol e de pescaria. Era o paizão da turma, sempre levava a gente para pescar. Reuníamos todos: arrumávamos a bagagem, a mochilinha e íamos. Pegávamos o trem para Velho da Taipa, em Pitangui e íamos pescar lá. A gente dormia na estação de Pitangui. Levávamos o cobertorzinho, forrávamos o chão, enrolávamos nele e dormíamos. Às quatro horas da manhã a gente acordava e ia pescar. Que tempo que a gente viveu assim, de coragem, de aventura.”
Maria Aparecida Rios, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
Produção e conservação de dormentes
Os dormentes são elementos da superestrutura ferroviária que funcionam como uma superfície de apoio, ajudando na distribuição do peso das locomotivas. Eles podem ser produzidos a partir de diversos materiais, como madeira, concreto, aço ou plástico. O dormente de madeira é o mais usado, pois reúne as características essenciais para um bom funcionamento: manuseio fácil, não sofre corrosão, boa resistência a descarregamentos e boa elasticidade. Apesar de todas essas características, a madeira está sujeita à decomposição devido aos agentes físicos, químicos e biológicos: fungos, bactérias e insetos. Para aumentar a durabilidade do dormente, a madeira era tratada com substâncias preservativas, como o creosoto (que não é mais utilizado por seu risco à saúde e ao meio ambiente), o arsenato de cobre cromatado e o borato de cobre cromatado.
A Superestrutura ferroviária
O sistema ferroviário se divide em dois conjuntos, a superestrutura ferroviária e a infraestrutura ferroviária. A infraestrutura é constituída pela plataforma, as obras de terra, e os sistemas de drenagem. A superestrutura, também conhecida como via permanente, é composta pelos trilhos, dormentes, lastro, suas fixações e acessórios.
Do eucalipto ao dormente
Diversos tipos de madeira podem ser utilizados como dormentes. Entre elas, as madeiras de eucalipto são as mais comuns. Introduzido no Brasil na década de 1960, o eucalipto foi rapidamente adotado pela indústria devido à sua boa adaptação ao solo brasileiro e ao seu rápido crescimento. Na Fazenda Horto da Liberdade, havia uma plantação de eucalipto e uma estação de tratamento, permitindo que os dormentes já saíssem da fazenda prontos para uso na via permanente.
O uso de creosoto no processo de conservação da madeira
O creosoto era usado como substância preservativa da madeira desde o início do século 19. Ele consiste em uma mistura orgânica de mais de 200 substâncias diferentes; é uma substância oleosa, de cor escura, de odor forte e intenso. Essa substância pode ser extraída de qualquer material vegetal parcialmente decomposto ou fossilizado. Esse material é submetido a um processo de carbonização que produz uma substância denominada alcatrão. A destilação do alcatrão fornece diversos produtos, dentre eles, o creosoto. Diversos tipos de creosotos podem ser obtidos de diferentes matérias primas, entretanto o mais utilizado em madeira é o creosoto de hulha (um tipo de carvão natural). Na madeira, o creosoto adere à sua parede celular, formando uma “capa” de proteção, extremamente eficiente contra a deterioração. Na ferrovia, o creosoto era amplamente utilizado no tratamento de dormentes e postes telegráficos.
Descrição do cheiro do creosoto
Cheiro terrível, forte, fedorento, impregnante e contaminante. Tão forte que, mesmo o dormente estando em área aberta, era possível senti-lo à distância. Cheiro impossível de descrever, que não há nada semelhante a ele. Quando impregnava na roupa era quase impossível de tirar.
Trabalho e saúde ocupacional
O tratamento de dormentes com creosoto foi amplamente utilizado no Brasil. O creosoto contém substâncias tóxicas que podem causar sérios problemas de saúde se não for manuseado corretamente, sem o uso adequado de equipamentos de proteção, como máscaras, luvas e roupas apropriadas. Em Azurita, há uma série de relatos de acidentes e problemas de saúde entre trabalhadores devido ao contato com o creosoto, muitas vezes agravados pelo uso inadequado dos equipamentos de proteção. Além disso, o descarte de dormentes tratados com creosoto, no meio ambiente, ainda pode resultar em contaminação dos solos, oferecendo diversos riscos ao meio ambiente e à saúde humana. Por esse motivo, esse tipo de tratamento não é mais utilizado. Hoje são utilizadas alternativas mais sustentáveis: dormentes de eucalipto tratados com CCA e CCB.
“O creosoto queima a pele. Dá um monte de caroço na pele da gente. Eu tenho caroço no peito até hoje. Dá coceira no corpo. Eu tratei com um médico em Divinópolis, foram três anos tomando remédio e injeção a cada cinco dias. Passei três anos tomando essa vacina e usando uma pomada. Essa doença do creosoto não tem cura, não. Eu estou tomando um remédio, o Estado está fornecendo para mim. Eu tomo todo dia, de 12 em 12 horas.”
Cícero Pereira de Souza, ferroviário aposentado.
“O remédio que eles usavam na imunização da madeira era muito forte. O cheiro forte, muito forte mesmo. A pele dos funcionários ficava impregnada daquele cheiro. Chegava em casa, tinha que tomar banho de bucha para tirar o cheiro forte. Ele chamava creosoto. Era um impermeabilizante pra não dar bicho. E não vai dar bicho mesmo não, porque uma catinga daquela!”
Maria Augusta de Souza, esposa de ferroviário.
“O dormente era tratado com um produto chamado creosoto. Quando o creosoto foi descartado, porque era tóxico, cancerígeno, o substituíram por outro produto que era menos problemático: o CCA, uma espécie de fungicida.”
Gilson Raimundo da Silva, filho de ferroviário e antigo morador do Horto da Liberdade.
“O dormente tratava com um tal de creosoto, entrava dentro de um tanque, e tinha um cara que trabalhava nesse tanque. Depois de tratar, a gente tirava pra fora, e a gente ia carregar as pranchas. Eu não tive problema não, mas tinha os ajudantes, coitados. Eles sofriam. Arrancava até a pele deles. O cheiro desse creosoto era forte demais. Uns três colegas que trabalharam comigo morreram de câncer no pulmão, por causa desse cheiro do creosoto. Depois de um tempo cortou o uso desse creosoto e passou a usar outro, que era menos forte.”
Mario Camilo Ferreira, ferroviário aposentado.
Os tipos de trabalho
Havia diversos postos de trabalhos na Fazenda Horto da Liberdade. Além dos trabalhos relacionados às funções ligadas diretamente ao plantio de eucalipto, produção e conservação de dormentes, havia postos de trabalhos relacionados à administração da fazenda, à carpintaria, à olaria e aos serviços gerais, como cuidados com a horta e com o pomar. Os relatos a seguir apresentam um pouco de cada uma dessas funções.
“Aqui no Horto eu fiz várias coisas. Eu fiz tanta coisa que é quase difícil de descrever. Eu comecei como trabalhador braçal. Trabalhei de operador de autoclave, que é onde imuniza a madeira. Fiquei lá um punhado de anos. Depois eu trabalhei de carreiro, de ferreiro, de pintor, de marceneiro, de eletricista, de soldador, de mecânico. Então a última parada minha aqui no Horto foi de mecânico.”
Gecy Pinto de Oliveira, ferroviário aposentado.
Plantio de Eucalipto
“Meu pai, Alcides Rvaibeiro Leite, mexia com carro de boi. Era ele que carregava as mudinhas para poder plantar. Saía lá da fazenda para ir para a cachoeira pegar esterco, para fazer a plantação de eucalipto.”
Ilma Ribeiro dos Santos, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
Imunização de dormentes
Lembro que na época de adolescente, vinham muitas carretas. Elas ficavam no pátio, em filas que chegavam até um quilômetro. As carretas chegavam com a madeira para ser feito o tratamento. A madeira chegava às toras, eles cortavam e tiravam as galhas… Aí serrava e punha na autoclave. Era um túnel, de 22 metros. Você colocava em uma vagoneta, tipo um trenzinho, empilhava ali umas 20 peças dentro e empurrava pra dentro da autoclave. Na época do creosoto, aquecia o creosoto e injetava ele ali dentro. Gilson Raimundo da Silva, filho de ferroviário e antigo morador do Horto da Liberdade.
Serralheria
Eu trabalhei na serraria e depois, quando eu aposentei, eu fui vigia. Mas, na Rede eu trabalhei lá na serraria, ajudando a aparar os dormentes. Eu trabalhava no acesso aparando os dormentes. Partia a madeira em duas partes. Tirava as toras, tirava as tabas e tirava o dormente. Tinha uma esteira que levava pra frente e eu aparava a cabeça dele, que tinha uma medida certa. Mario Camilo Ferreira, ferroviário aposentado.
Olaria
“Aqui tinha uma cerâmica onde faziam tijolos. E muitos tijolos dessas casas aqui foram feitos a partir dessa cerâmica. Os funcionários produziam tijolos para vender.”
Gilson Raimundo da Silva, filho de ferroviário e antigo morador do Horto da Liberdade.
“Eu trabalhava na fazenda e tinha cinco companheiros que mexia com tijolo. Eu batia dois mil tijolos todos os dias. Era uma carreira de trinta, trinta e cinco, quarenta, até quarenta mil!”
Cícero Pereira de Souza, ferroviário aposentado.
Serviços Gerais
“Meu pai, José Ferreira Rios, era muito ativo, fazia de tudo um pouco. Ele queimava carvão nos fornos, que servia para aquecer a maria-fumaça e a máquina de creosoto. Além de fazer rondas noturnas, trabalhar na usina, na horta e no pomar. Um verdadeiro faz-tudo.”
Maria Aparecida Rios, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
Escriturários
“O pai, Antônio Camilo Ferreira, foi ferroviário, ele era escriturário. Ele foi o primeiro empregado deles lá. Quando a Rede comprou essa fazenda, ele já trabalhava na fazenda tirando leite. Acho que ele tinha 15 anos de idade.”
“Para recolher o eucalipto plantado, era necessário o uso de máquinas especiais como tratores e retroescavadoras. Meu marido, Geraldo Rodrigues de Paula, entrou como operador de máquinas. Mas ele não trabalhou muito tempo com a máquina, não. Depois ele e o Geraldo passaram a trabalhar como motorista do engenheiro que tinha lá na fazenda.”
Maria Augusta, esposa de ferroviário.
Comunidade
As casas amarelas com janelas e portas azuis, o pomar e a horta comunitária, a escola Barão de Mauá, as brincadeiras, as pescarias, a barragem, o campo de futebol e os festivais faziam parte do cotidiano das famílias que viveram na Fazenda Horto da Liberdade. Muitos recordam com saudade as histórias vividas nesse espaço, onde a convivência e os laços de amizade foram cultivados ao longo dos anos. Para muitos, a Fazenda foi uma verdadeira comunidade. Os depoimentos dos que lá viveram falam por si só, trazendo à tona memórias de uma vida rica em experiências compartilhadas e momentos de união.
A sede da fazenda
A sede da fazenda Horto da Liberdade era utilizada, pelos engenheiros e outros funcionários do alto escalão da Rede Ferroviária Federal, como casa de campo. Lá, eles podiam passar os finais de semana hospedados. Os funcionários da fazenda e seus familiares, normalmente, não frequentavam esse espaço. Ela possui uma piscina e um campo de futebol nos fundos, também contava com uma mesa de bilhar.
“Na fazenda tinha uma sede que acolhia os funcionários que vinham de fora. Funcionários da Rede que não trabalhavam na Fazenda. Alguns vinham Belo Horizonte para ficar no final de semana, uma coisa assim… era meio que uma casa de passeio. Mas, a gente não tinha acesso a essa casa.”
Telma Regina Rezende Ferreira, filha de ferroviário e antigo morador do Horto da Liberdade.
As casas
Na fazenda, havia cerca de dez casas construídas para os funcionários e suas famílias. Elas eram muito semelhantes entre si: paredes amarelas, janelas azuis, de tamanhos e formatos semelhantes. Ficavam enfileiradas, bem próximas umas das outras. Havia ainda, duas casas separadas que ficavam abaixo da escola. Estas eram para os funcionários que trabalhavam na área administrativa da fazenda. A distribuição espacial das casas contribuiu para estreitar os laços de afeto e amizade entre as famílias que ali viviam. As casas foram demolidas e poucos resquícios de suas estruturas permanecem de pé, resistindo à passagem do tempo.
“Cada casa era de um funcionário da Rede. Tinha uma casa que era do chefe, perto da Sede, e uma outra ao lado, que pertencia ao pessoal do escritório. Mais para cá eram as dos outros funcionários que trabalham no serviço braçal.”
Telma Regina Rezende Ferreira, filha de ferroviário e antigo moradora do Horto da Liberdade.
“A Rede dava a oportunidade para quem quisesse morar na Fazenda. Quando o funcionário se aposentava, tinha que desocupar a casa para dar lugar a outros. Meu pai não queria sair de jeito nenhum.”
Maria Aparecida Rios, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
A Escola Rural Barão de Mauá
A Escola Rural Barão de Mauá foi construída para atender os filhos dos funcionários que moravam na fazenda. Localizada ao lado das casas, a escola oferecia ensino até o quarto ano primário. De acordo com os relatos, as turmas do segundo e terceiro ano estudavam juntas, enquanto as do primeiro e quarto ano eram separadas. A partir do quinto ano, as crianças passavam a estudar em Azurita. Muitos se lembram de percorrer um caminho de 3 km até a escola em Azurita. O imóvel que abrigava a escola ainda está de pé, com a inscrição “Escola Barão de Mauá” visível em uma das paredes. Desde o fim das atividades da rede ferroviária no Horto da Liberdade, o imóvel permanece sem uso.
“As aulas eram de manhã, com turmas eram multisseriadas, ou seja, alunos de diferentes anos juntos. As carteiras eram juntas também e as professoras vinham de Itaúna ou Azurita. Depois do quarto ano, fazíamos a caminhada em grupo para estudar na cidade.”
Maria Aparecida Rios, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
“O nosso uniforme era calça azul e blusa branca. E a nossa escola chamava Escola Rural Barão de Mauá. Tinha sempre as festas juninas na escola, que era muito movimentada.”
Gilson Raimundo da Silva, filho de ferroviário e antigo morador do Horto da Liberdade.
Horta e pomar comunitários
A horta e o pomar comunitários ficavam próximos à sede da fazenda. Eles eram cuidados pelos funcionários que trabalhavam no plantio e colheita dos alimentos. Todos podiam desfrutar do que era colhido.
“Tinha um pomar bonito lá no Horto, nesse pomar tinha muita mexerica, muita laranja. Então, uma ou duas vezes por semana, você podia ir lá e encher um saco com mexerica. Tinha horta e um pessoal que trabalhava nela, plantando. Tudo que produzia de verduras, qualquer coisa, era de graça pros empregados. Eu fazia um serviço na fazenda que chamava “laminar serra”, era muito complicado, esquentava a cabeça com ele. Quando começava a dar problema, eu largava aquilo e ia pro pomar. Eu sozinho, ia pro pomar… botava a cabeça pra descansar…”
Gecy Pinto de Oliveira, ferroviário aposentado.
O Campo de Futebol
O campo de futebol localizava-se próximo às casas dos ferroviários e era uma das principais opções de lazer na fazenda. Com uma boa infraestrutura, incluindo um vestiário e um bar, o campo era dominado pelo Ferroviário Esporte Clube, tanto nas categorias feminina quanto masculina. Além do Ferroviário Esporte Clube, outros times que deixaram sua marca foram o Independente e o Santos, times de Azurita que sempre participavam dos festivais que aconteciam na fazenda. O festival funcionava como um torneio de futebol. Ônibus lotados chegavam com os times de outras cidades mineiras para a competição. Muitos aproveitavam o fluxo de pessoas no campo para vender refeições e doces.
“Fui treinador do time de ferroviários por 4 anos. Fui até campeão lá. Quase todo domingo tinha festival. Tinha jogo o dia inteiro. Vinha time do Belo Horizonte… vinha cinco ônibus! Ficava cheio de tanto torcedor lá.”
Mario Camilo Ferreira, ferroviário aposentado.
Festividades
Algumas celebrações na fazenda eram proporcionadas pela Rede Ferroviária. Nas festividades de Natal e Dia das Crianças, eram distribuídos presentes para os filhos dos funcionários.
“Tinha festa, no Dia das Crianças, eles traziam brinquedos para gente e tudo, dava pipoca, picolé, algodão doce… Minha mãe tinha o maior medo, falava que algodão doce era um negócio esquisito e não deixava a gente comer. No Natal, mandavam os presentes para os filhos dos ferroviários. Fazia uma festinha para os ferroviários, tinha refrigerante e pão com salame.”
Maria Aparecida Rios, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
Jogos e brincadeiras
Além do campo de futebol, os jogos e brincadeiras eram atividades de lazer rotineiras, não apenas para as crianças que cresceram na fazenda, mas também para os adultos que participavam dessas atividades. Os jogos de baralho são os mais lembrados por todos, muitas vezes debaixo de uma árvore, crianças e adultos passavam horas do dia jogando cartas.
“A gente sempre jogava na casa do Cidico. Às vezes a gente jogava em frente à casa dele, lá tinha duas árvores de figo, duas árvores enormes, que faziam a sombra. Aí ele chegava estendia uma coberta ou uma toalha, e se sentava ali.”
Gilson Raimundo da Silva, filho de ferroviário e antigo morador do Horto da Liberdade.
“O negócio nosso era brincar na rua, de roda, de passar anel… A gente juntava as turminhas, pois a maioria tinha a mesma idade. A gente varria a rua, sentava-se no chão e brincava.”
Telma Regina Rezende Ferreira, filha de ferroviário e antigo morador do Horto da Liberdade.
A Barragem
A barragem era usada para refrescar em dias de calor. Tinha uma pequena queda d’agua e alguns contam que aprenderam a nadar ali. Era uma piscina natural que podia ser disfrutada por todos que ali viviam.
“Nós tínhamos tudo, o que é melhor que aquela barragem? Ela caia uma água em cima das pedras, isso para nós era uma beleza, era a nossa piscina, mas não era de vestir biquíni, era de short mais comprido. A barragem era boa demais, eram umas pedras maravilhosas, tinha uma cachoeira e a gente andava ali. Para nós não tinha nada melhor. Era a nossa piscina de ouro, era tudo muito natural, tudo muito bom.”
Telma Regina Rezende Ferreira, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
Histórias e Casos
E o badalo?
Em tempos passados, em Mateus Leme, um dos únicos entretenimentos dos moradores
era ir à estação ferroviária para ver os trens passarem. Naquela época, os trens eram
frequentes, mas seus horários eram incertos. Para resolver esse problema, o chefe da
estação, Seu Ferreira, usava um sino para avisar a população: uma badalada significava
trem vindo de Azurita e duas, de Juatuba.
Certo dia, Ferreira recebeu a notícia de um trem vindo de Azurita e logo deu uma
badalada no sino. Em seguida, foi informado sobre outro trem, agora de Juatuba, e
precisava fazer o cruzamento dos dois. Ele enviou os guarda-chaves, Neca e Carreiro,
para alertar os maquinistas e preparou-se para dar duas badaladas no sino. Porém, no
momento da segunda badalada, a corda já muito esgaçada pelo tempo, se rompeu e o
sino caiu, acertando Seu Elias Salomão na cabeça, só não o matando porque seu corpo
entrou dentro do sino, ficando aquele com as bordas (a boca do sino) na altura das costas
do seu Elias.
Fernando Abreu Mendes, morador da cidade, adorava contar essa história para as
pessoas e ao chegar nesse ponto dava uma parada na narrativa e ficava esperando
alguém analisar a situação, achar estranha, discordar e por fim dizer:
— Peraí Fernando, isto não pode, não tá correto… e o badalo?
Quem já sabia da história, nesta hora caia na gargalhada, rindo de quem acabara de cair
na arapuca do Fernando, que, fazendo uma cara de satisfeito, dizia:
— O badalo você enfia no…
Um dia, Fernando contava essa história para um grupo de pessoas e, de repente, dentre
elas surgiu o Padre Bento Mateus Borges. Quando o Fernando acabou a narrativa,
esperou para ver quem seria o trouxa da vez. Mas Padre Bento antecipou-se a todos e
sem nenhuma cerimônia foi logo dizendo:
— Uai, Fernando, não pode… E o badalo?
Quem sabia o que viria adiante caiu na risada por causa da situação embaraçosa na qual
Fernando tinha se enrolado. Como ele responderia ao padre?
Fernando, tirou uma tragada no cigarro, respirou fundo, colocou o braço em volta do
pescoço do Padre Bento, e disse:
— Padre, pelo pouco tempo que o senhor está por aqui já deu para ver que em Mateus
Leme as coisas não são como nos outros lugares, não é mesmo? Por exemplo, o cidadão
conhecido como “João Sapateiro” na verdade não é sapateiro, é pedreiro… “Geraldo
Barbeiro” é pedreiro…
— É daí? retrucou Padre Bento.
— Daí, respondeu o Fernando, que como tudo que acontece em Mateus Leme é ao
contrário, o badalo do sino é do lado de fora… História adaptada do arquivo “Fragmentos Condensados de uma Cidade do Interior”, de Mário Lúcio Mendes.
A grande surpresa
Um dia, para surpresa de todos, minha tia Idalina chegou na fazenda Horto Liberdade
em um caminhão-baú trazendo duas enormes caixas. A primeira era quadrada e grande,
e a segunda, retangular e comprida. A curiosidade tomou conta de todos nós, que
corremos para ver o que havia dentro.
Minha tia, impaciente, gritou:
— Sai pra lá, molecada!
Mesmo assim, seguimos de perto enquanto os rapazes levavam as caixas para dentro.
Quando abriram a primeira, ficamos boquiabertos: era uma enorme geladeira azul-claro,
da marca Electrolux. Só conseguimos exclamar:
— Oh! Uau!
Logo, os rapazes começaram a carregar a segunda caixa. Ficamos ainda mais curiosos,
até que minha tia revelou:
— É uma televisão! Agora sumam daqui, pois o moço vai instalar a antena.
Não arredamos o pé e ficamos espiando pela janela. O moço ajeitava a antena,
instruindo o colega:
— Vira para a esquerda. Não, para a direita! Isso!
Finalmente, o aparelho estava pronto. Minha tia ligou a TV e, para nossa alegria, todos
os canais estavam funcionando. Embora a imagem fosse em preto e branco, era algo
mágico para nós.
A notícia se espalhou rapidamente, e logo a casa da tia Idalina virou ponto de encontro.
Ela, orgulhosa, mostrava os canais:
— Itacolomi, Globo, Bandeirantes, Alterosa, Rede Tupi!
A televisão trouxe muita alegria, mas também mudou nossas vidas. Antes, as
brincadeiras ao ar livre, como pular amarelinha e nadar na lagoa, eram nossa diversão.
Agora, passávamos horas em frente à TV, assistindo aos programas favoritos: “Discoteca
do Chacrinha”, com seu famoso “Quem quer bacalhau?”, e o “Programa Silvio Santos”,
que fez todo mundo comprar o Carnê do Baú.
A fazenda nunca mais foi a mesma. As brincadeiras deram lugar à TV, e o mundo lá fora
ficou um pouco mais distante. História adaptada do livro “As raízes profundas do Horto da Liberdade”, de Maria Aparecida Rios, 2008.
O susto
Meu primo Ronaldo, que residia em Pará de Minas, adorava passar férias na fazenda.
Ele, muito atentado, vivia dizendo palavrões, xingava o nome da “mulher pelada” o dia
inteiro… Mamãe dizia que quem xingasse aquele “palavrão”, alguma coisa terrível
aconteceria com a pessoa. Mas ele nem ligava e continuava sempre xingando…
O dia amanheceu ensolarado. Mamãe colocou todos para fora da cama, bem cedinho,
pois era dia de capinar o arrozal. Ronaldo foi resmungando e xingando, mas foi… Ao
chegarmos no arrozal, a primeira coisa que Ronaldo fez foi subir no pé de jatobá. Falta
de avisar não foi…
Deixamos o primo Ronaldo no pé de jatobá, fazendo gracinha, e fomos trabalhar.
De repente, começou um tremendo rodamoinho, parecia mais um furacão! De longe
ouvíamos os gritos de Ronaldo. Corremos para ver o que estava acontecendo, mas já era
tarde! O danado sumira…
Corremos de volta para a fazenda e chamamos os ferroviários. Cada homem levou uma
foice e uma lanterna, pois já estava escurecendo.
Gritavam:
– Ronaldo… Ronaaaaldo!
E nada!
Lá pelas três da madrugada, sr. José Felipe ouviu uns gemidos…
– Socorro, socorro… Estou preso aqui.
A voz vinha do emaranhado de “Unha de Gato”, cheio de espinhos. Sr. Felipe chamou os companheiros e todos ficaram abismados de ver o garoto preso, lá no meio. Cortaram com cuidado, até conseguirem tirar Ronaldo, com vida. Quiseram saber como ele fora parar lá. Ele relatou tudinho:
– Na hora que começou o pé-de-vento eu estava em cima do pé de jatobá.
AÍ apareceu uma mulher horrorosa! Toda rasgada, descabelada. Ela me disse:
– É você que me chama?!
Tremi feito vara verde!!! Ela então me agarrou pelo braço e saímos juntos com o rodamoinho. Quando ela viu as “Unhas de Gatos”, logo disse:
– É aqui que é lugar de criança que fala nome feio! Fique preso aí. Rá, rá, rá, rá, rá…
Depois desse dia Ronaldo virou outro menino… Ficou trabalhador, dedicou-se aos
estudos e nunca mais quis saber de palavrão! História extraída do livro “As raízes profundas do Horto da Liberdade”, de Maria Aparecida Rios, 2008.
Briga de política no restaurante de Azurita
Vitorino Jardim, muito inteligente e comunicativo, recebia em seu restaurante muitos
chefes políticos. Ouvia confidências de vários deles e acabava se tornando conselheiro
de personalidades como Melo Viana (sua esposa chegou a vice-presidente da República),
Janot Pacheco (engenheiro famoso, diretor da Oeste de Minas e depois fazendeiro em
Soledade do Pará), Carvalho de Brito, Cristiano Machado, Olegário Maciel e, claro,
Benedito Valadares.
Muito amigo de Benedito, houve um período em que ficaram inimigos políticos. Em 1930
o então Presidente da República, Washington Luiz, indicou Getúlio Vargas como
candidato às eleições presidenciais para sucedê-lo. Formou-se uma grande aliança de
apoio a Vargas, chamada Frente Liberal, apoiada por Benedito.
Vitorino Jardim, no entanto, apoiou o candidato adversário, Júlio Prestes, que venceu a
eleição. Na época da campanha, Vitorino enfeitou o restaurante com cartazes e fotos de
Júlio Prestes, o que irritou profundamente Benedito Valadares. O vencedor não chegou
a tomar posse, pois Getúlio Vargas, no mesmo ano de 1930, liderou um movimento
armado que tomou à força o poder.
Benedito ficou um bom período sem falar com Vitorino. Quando seu trem parava na
estação de Soledade, ele descia para esticar as pernas e não entrava no restaurante.
Ficava andando de um lado para o outro na plataforma, com a cara amarrada. Às vezes,
chamava às escondidas o então menino Iracy Jardim e pedia a ele que fosse lá dentro
buscar um generoso copo de cachaça, de que tanto gostava.
Depois disso, Benedito foi candidato a deputado federal e precisou do apoio de Vitorino,
que se dispôs a ajudá-lo. Reatada a amizade, Benedito foi eleito deputado e depois
nomeado Governador (Interventor) do Estado de Minas Gerais pelo Presidente Getúlio
Vargas.
História adaptada do livro “Azurita conta a sua história”, de Marcelo Lopes Costa, 2003
Sopa quente
Muitos casos interessantes se contam de Vitorino Jardim e do restaurante. O que se
tornou folclórico é o da “sopa quente”. Quando o trem parava em hora de almoço e
jantar, os passageiros desciam e pagavam uma tarifa única pela refeição. Ao entrarem
no restaurante, já apreciavam sobre um balcão os apetitosos pratos que seriam servidos:
carnes, peixes, aves e o famoso rosbife, uma das especialidades de Vitorino. Quando
todos já estavam sentados, ele mandava então servir uma sopa extremamente quente, fumegante, que obrigava os convivas a soprar demoradamente cada colherada antes de levá-la à boca.
Com isso o tempo ia passando e quando o último passageiro, a duras
penas, acabava de comer a sopa e os pratos principais começariam a ser servidos,
escutava-se o apito do trem chamando para a partida. Todos se levantavam apressados
e se dirigiam aos vagões, por receio de serem deixados para trás. Dessa forma, Vitorino,
sabiamente, servia várias turmas de passageiros com os mesmos “pratos principais”. (Si
non è vero è bene trovato!).
História extraída do livro “Azurita conta a sua história”, de Marcelo Lopes Costa
O relógio de ouro
A minha mãe não gostava que eu e minha irmã mais velha jogássemos futebol. Minha
irmã mais velha chutava igual Nelinho, tinha um chute que fazia gol do meio de campo!
A minha mãe falava assim:
– Eu não gosto que minhas filhas joguem futebol, não gosto. Isso é coisa para homem, para macho. Mulher tem que ser mais feminina.
E eu falava:
– Mãe, faz um short para mim, eu gosto de brincar com os meninos! Eu não gosto de roupa de mulher, não. Eu gosto de shortinho, para poder sentar no chão e brincar com os meninos. As meninas têm uma brincadeira sem graça demais. Eu gosto de futebol!
Parece que estava no sangue! A gente treinava, tinha treino toda terça e quinta-feira.
Tinha que treinar muito para jogar. A minha mãe sempre dizia:
– Olha só, você devia estar estudando… Vou te dar um relógio de ouro, puro ouro, para
você largar o futebol.”
Naquele tempo o povo gostava de um ouro, pensei e falei:
– Na terça-feira eu vou decidir.
Quando chegou o dia, a minha mãe perguntou se eu iria querer o relógio, então falei:
– Não! Eu vou pôr o relógio no braço, ele vai cair, eu vou perder, eles vão me roubar na
escola, não quero esse relógio, não! Eu vou continuar com o meu futebol!
História inspirada no relato de Maria Aparecida Rios, filha de ferroviário e antiga moradora do Horto da Liberdade.
A árvore de figo
Na fazenda havia uma grande árvore de figos, que ficava em frente à casa do Cidico. Era
um ponto de encontro do pessoal que ia até lá para jogar baralho. O Cidico estendia
cobertas à sombra daquela bela figueira. A molecada, as mulheres, os rapazes, todo
mundo se juntava ali e ia cantando as pedras. Isso acontecia no final de tarde, a gente
sempre estava por lá. Se tivesse duas, três pessoas, já dava para começar. Sempre que
alguém começava, meia hora depois chegava mais dois, três até ficar cheio de gente. A
gente ficava ali até a iluminação permitir. Quando começava a escurecer cada um dava o seu jeito.
A gente não tinha televisão na época, ela era um item de luxo no início dos
anos 80. Os jogos debaixo da árvore de figo eram a nossa diversão na época. Depois
vieram as brincadeiras de queimadas, que a gente fazia na rua, Pique-esconde… Isso
tudo na década de 80. História inspirada no relato de Gilson Raimundo da Silva, filho de ferroviário e antigo morador do Horto da Liberdade.
O presente de Natal
Na época do Natal houve uma distribuição de brinquedos na Escola Barão de Mauá.
Lembro que isso aconteceu uma ou duas vezes. Uma vez, eu estava doente e não pude
ir até a escola. Então, minha mãe foi até lá para buscar o presente. Mas, o pessoal da
escola não a deixou levar o brinquedo, disseram que somente a criança poderia receber.
Assim, eu acabei ficando sem o presente.
Meu pai ficou muito chateado com a situação. Ele veio aqui em Azurita, de bicicleta, para
comprar um aviãozinho igual ao que as outras crianças tinham recebido. Ele fez questão
de comprar e levar para mim! Lembro que era um aviãozinho de plástico. Ao me entregar
o brinquedo ele me disse que tinha sido o Papai Noel da escola que tinha me dado, mas
na realidade ele que veio até aqui, em Azurita, de bicicleta para comprar. História inspirada no relato de Gilson Raimundo da Silva, filho de ferroviário e antigo morador do Horto da Liberdade.
O último trem
A última vez que nós andamos de trem foi quando a gente matou aula. Nós matamos o
último horário porque a gente estudava em Itaúna e no último horário era a Educação
Física. A Educação Física era uma vez por semana e a aula terminava às 4h20, e o trem
saia, eu acho, às 4h30 ou às 4h45.
Eu sei que a gente descia correndo para pegar o trem. Na época, eu tinha 17 anos, em 1978. O trem demorava muito, de ônibus gastava mais ou menos meia hora para vir de Itaúna até aqui, e de trem a gente gastava uma hora e tanto. E, a gente vinha na farra!
Quando foi um domingo, reunimos a nossa turma de amigos aqui, que a gente sempre
tinha a nossa turminha. Foi uma turma grande, lembro que o Zé Manuel foi tocando
violão. E nós fomos daqui pra Itaúna. Só tinha a gente no vagão. Então, nós fomos e foi
aquela farra. Aí, no ano seguinte, a gente queria matar aula de novo, mais uma vez, para
voltar de trem. Mas aí já tinha acabado, não tinha mais o trem. Então, eu acho que nós
fomos umas das últimas pessoas a andar de trem. Aqui, nesse percurso. O último do
trem.
História inspirada no relato de Walkiria das Dores Silva, moradora de Mateus Leme.
O Vagão de milho
Eu estava em um sono pesado, e eu acordei com o prédio balançando, um barulho
enorme. Mas, meu sono estava tão pesado que quando eu acordei, tornei a dormir
imediatamente. Pensei que era a batida de caminhão e voltei a dormir. No outro dia,
quando eu levantei, ouvindo helicóptero da Rede Globo, helicóptero de não sei o quê,
reportagem… depois descobri que era o trem que tinha descarrilado, foram três ou dois
vagões que capotaram e foram lá para baixo, carregados de milho. Tinha milho para todo
lado. O milho foi fermentando e foi ficando aquele cheiro. Cheiro não, era mal cheiro. E
a coisa foi ficando terrível. Minha filha, ela tem sinusite, sentia dor de cabeça. O pessoal
teve que acessar até a justiça, pra acelerar o processo.
História inspirada no relato de Walkiria das Dores Silva, moradora de Mateus Leme.
A despedida da caixa d’água
Uma vez eu inventei de fazer uma banda. Um grupo de pagode junto com uns meninos.
Os vocalistas eram meu filho e eu. No dia em que a gente estreou a banda eu falei:
“Vamos filmar a estação e a caixa d’água”.
Não sei bem o motivo, mas eu sentia que um dia ela poderia ser destruída. Eu sentia que essa caixa d’água tinha um valor e que um
dia poderia ser roubada. E foi exatamente, isso o que aconteceu. Quando eu assustei, já
tinham levado ela. Ela tinha algum segredo… Eu acho que devia ter algumas peças de
valor entre as ferragens. Destruíram tudo… Eu até tentei preservar a parte de concreto
onde ela ficava, porque sobrou só esqueleto. Mas, quando eu assustei, tinham levado
tudo. Eu estava trabalhando em Mateus Lemes, e não deu tempo de salvar nada. Isso foi
em 2003, mas eu fiz uma filmagem, tipo uma despedida, pois eu sabia que um dia eles
poderiam acabar com ela. Aproveitei e levei os meninos pra fazer a filmagem junto
comigo e tiramos essa foto.
História inspirada no relato de José Maria, filho de ferroviário.
Pedido inesperado
Meu pai, Antônio Camilo Ferreira, trabalhou 33 anos no escritório da fazenda da Rede.
Ele era um homem muito inteligente. Quando começou a trabalhar na fazenda, queria
mesmo era ficar no plantio de eucalipto. Como ele escrevia muito bem, seu chefe
mandou chamá-lo ao escritório. Naquele momento, ele achou que seria mandado
embora, até se assustou. Chegando lá, o chefe falou assim:
– Antônio, lava suas mãos lá.
Meu pai lavou e enxugou as mãos. Então, seu chefe continuou:
– Senta aí, vai preenchendo nesses papéis pra mim.
Depois que meu pai preencheu os papéis, o chefe disse:
– Bom, a partir de amanhã, você pode vir com roupa social, você vai ficar no escritório!
A partir desse dia, ele ficou no escritório até se aposentar, após 33 anos de serviços
prestados no escritório do Horto da Liberdade. História inspirada no relato de Mário Camilo Ferreira ferroviário aposentado e antigo morador do Horto da Liberdade.
O festival do Horto da Liberdade
Aos domingos, no campo de futebol do Horto da Liberdade, era comum acontecer um evento que a gente chamava de Festival. O Ferroviário Esporte Clube, time da fazenda,
convidava os times de futebol da região, de Belo Horizonte, Brumadinho, até
Justinópolis… vários times. Esses times vinham de ônibus para disputar um troféu. O dia
inteiro era uma sequência de jogos, que iam até umas seis da tarde, ou até acabar o
último jogo. E ainda tinha aquela resenha depois, né? O pessoal não largava o osso fácil!
Depois dos jogos, a turma se juntava no barzinho que tinha por lá para prosear e tomar
uma cervejinha.
Esse barzinho ficava entre os dois vestiários e era uma fonte de renda pro Ferroviário.
Ou seja, a cerveja e os sanduíches que o pessoal comprava geravam uma grana para
manter o time. Eu até trabalhei lá por um tempo, meio que como voluntário.
Uma personalidade icônica daqui era o João Dunho. Ele não morava em Azurita, viveu a
vida toda em Pará de Minas, mas trabalhava no escritório da Fazenda da Rede e, por
muito tempo, foi presidente do Ferroviário. Ele gerenciava o barzinho e, muitas vezes,
eu ficava com ele lá, ajudando a vender e arrecadar o dinheiro. Com essa grana, às vezes,
dava pra lavar os uniformes, comprar bolas ou redes. Embora muita coisa fosse
patrocinada por políticos e comerciantes da região, a gente ainda precisava de dinheiro.
A Rede Ferroviária também ajudava, doava uniformes, bolas e sempre estava dando
apoio.