A Mogyana, fundada em 1872, expandiu-se para Minas Gerais e Goiás. Apesar de obstáculos iniciais, a persistência das elites de Uberaba garantiu a chegada dos trilhos à cidade em 1884, com obras iniciadas em 1887.
Vai ter ferrovia no Triângulo Mineiro!
As estradas de ferro já se espalhavam pelo solo brasileiro desde 1854, quando o imperador D. Pedro II inaugurou a primeira linha entre Petrópolis e Mauá, no Rio de Janeiro. A Mogyana nasce em 1872, em Campinas (SP), mas somente no final da década a ideia de transpor as fronteiras do estado e passar por Minas rumo a Goiás começou a ser ventilada. A confluência entre o interesse das elites do Triângulo Mineiro de receber a ferrovia e o das companhias ferroviárias de expandirem-se rumo a Goiás levou a Assembleia Provincial de Minas Gerais a publicar em 1881 a Lei nº. 2.791, que autorizou a concessão de crédito para a construção de ferrovia, desde que ela passasse necessariamente por Uberaba.
Ou será que vai mesmo ter ferrovia por aqui?
A Lei nº. 2.791 não bastou. Em 1882, o Decreto Imperial nº. 3.139 concedeu à Cia. Mogyana o direito de levar os trilhos somente até a margem esquerda do Rio Grande, com a obrigatoriedade de estender um ramal até a cidade mineira de Poços de Caldas; no entanto, não mencionava Uberaba. Cresceu o temor na cidade de que a linha da Mogyana sairia de Jaguara rumo ao norte diretamente para Araguari e de lá para Catalão – passando ao largo de Uberaba. Uma frente de deputados mineiros aliados aos interesses de Uberaba trabalhou intensamente para reverter a situação. Toda essa persistência e dedicação da cidade para receber a ferrovia demonstra o quanto aquilo importava para a cidade. Foram três anos de longas disputas até que fosse firmado o contrato que garantia a extensão dos trilhos até Uberaba, no dia 1º de outubro de 1884. Em 1887 começou a construção de uma ponte sobre o Rio Grande em Jaguara, dali partindo para a Princesa do Sertão.
“No Brasil do final do século XIX, a ferrovia representava uma espécie de marca de civilização que levaria as ideias de modernidade e progresso para as diferentes regiões onde os trilhos aportassem. E foi exatamente este o sentido que os trilhos da Cia Mogiana trouxeram para a região conhecida como Sertão da Farinha Podre, que, doravante, foi denominada Triângulo Mineiro.”
Entrevista com Sandra Mara Dantas, historiadora da UFTM.
A tão esperada ferrovia
Depois de anos de disputa, foi anunciado, enfim, que a Mogyana chegaria em Uberaba no dia 4 de abril de 1889. A cidade deu início a intensos preparativos para receber a tão esperada maria-fumaça, com grande festa e várias reformas urbanas. Poucos dias antes do evento, a cidade se surpreendeu com uma visita inesperada para prestigiar a expansão dos trilhos: o senhor Conde D’Eu, esposo da então Princesa Isabel. O conde foi levado em um trem especial até o limite do assentamento dos trilhos, já nas proximidades de Uberaba. De lá, fez uma rápida visita à cidade, que se encerrou com um almoço festivo na casa de Crispiniano Tavares, engenheiro da Cia. Mogyana.
Dia de festa
A ponta dos trilhos chegou de fato a Uberaba no dia 4, mas a festa de inauguração só ocorreu no dia 23 de abril. Nesse dia, quando apitou a locomotiva ao fundo, fogos de artifício explodiram no ar, e a banda Lyra da Mocidade tocou em seu louvor. A população de Uberaba ofereceu um jantar para todos os trabalhadores e diretores que chegavam no trem. No dia seguinte, houve uma celebração na igreja matriz, com cortejos populares.
“Neste momento nada mais importava, nada mais incomodava. Fundamental era ver o trem chegar. A tão formosa máquina aportaria às 16h30. Era 4 de abril, dia da inauguração dos trilhos.”
Mogiana: os trilhos da modernidade, página 38.
“Há uma foto do início do século XX, uma foto clássica, mostrando a praça Rui Barbosa lotada de carros de boi de gente, das localidades mais distantes, que vinha fazer compras em Uberaba. Se vinham comprar era porque a praça de Uberaba oferecia todo tipo de mercadoria. E toda a riqueza do comércio local, com grande quantidade de produtos importados, dependia, totalmente, do transporte via Mogiana.”
Depoimento de Jorge Alberto Nabut, jornalista, escritor uberabense e morador das proximidades da praça da Mogyana.
O novo tempo da ferrovia
A ferrovia chegou em Uberaba e transformou principalmente o tempo na cidade. De repente, era possível viajar a São Paulo em menos de 24 horas e chegar ao Rio de Janeiro em menos de dois dias. O telégrafo trouxe velocidade para as notícias vindas de fora. Exatamente um ano antes da chegada da ferrovia, a escravidão durou quatro dias a mais em Uberaba – pelo tempo que a notícia da abolição levava para atravessar o país, por exemplo. Além disso, os moradores passaram a ter contato com produtos vindos de São Paulo e até mesmo com importados em seu cotidiano, além de ganharem acesso a serviços antes inexistentes na cidade. O comércio cresceu, inúmeros imigrantes de diferentes países vieram para a cidade e trouxeram consigo novos hábitos, costumes e conhecimentos. O futuro estava se instalando.
O curto apogeu
Os primeiros anos da ferrovia na cidade fizeram jus a todo esforço empregado na sua conquista. A população se encantou com a maria-fumaça. A estação trazia um novo movimento para a cidade, otimizando o escoamento das produções locais, como o gado e seus derivados, principalmente. Por ser ponto final da linha, a estação central também trazia imigrantes e fomentava o comércio local nos arredores. No entanto, a festa durou pouco. Em 1896, o deslocamento do ponto final de Uberaba para Araguari tirou a Princesa do Sertão do centro do comércio, e a cidade entrou em um período de decadência comercial. Muito do que veio com a ferrovia ficou: o telégrafo, as fábricas, os imigrantes, hotéis, comércios, cafés, o consumo de mercadorias antes indisponíveis na cidade, além de toda a transformação urbana do território. Todavia, embora até hoje a ferrovia funcione na cidade, desde a sua extensão a Araguari, ela nunca mais foi o principal locomotor do progresso, como era esperado.
“Ainda que a ferrovia representasse o progresso, ela adquiriu contornos contraditórios. Na segunda metade do século XIX, Uberaba era a principal cidade da região do Triângulo Mineiro e em 1889, os trilhos chegaram com a euforia de seus grupos sociais. Seis anos depois foram inaugurados em Uberabinha e depois em Araguari. Por fim, no início do século XX, a ferrovia atravessou o rio Paranaíba e chegou a Goiás. Assim, Uberaba foi perdendo sua primazia..”
Entrevista com Sandra Mara Dantas, historiadora da UFTM.
A linha que não chegou
No mesmo período da inauguração da Mogyana na cidade, havia um planejamento nacional para estabelecer uma conexão da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil com a linha da Mogyana por um ramal entre Uberaba e Uberlândia (na época, São Pedro de Uberabinha) que ligaria a região ao município de Coxim, no Mato Grosso. Essa linha poderia ter retomado o fôlego da ferrovia na cidade. No entanto, em 1894, devido à pressão de São Paulo, o planejamento da linha foi alterado pelo Decreto nº. 5.349; este determinava que os produtos não fossem escoados por Uberaba, e sim por Bauru, no estado paulista.
Progresso pra quem?
Uberaba foi profundamente marcada pela escravidão. A Mogyana chegou à cidade exatamente um ano após a abolição. A famosa Princesa do Sertão foi palco de conflitos cotidianos, envolvendo a crescente luta dos escravizados pela alforria, com episódios de revolta e tensões causadas pela lei do ventre-livre, além do constante medo que os senhores de escravizados tinham de perder o controle sobre estes. Nesse contexto, o progresso e a urbanização que vinham com a ferrovia foram acompanhados de um processo de expulsão para as periferias da população negra e de suas manifestações, vistas pelas elites como incivilizadas e ameaçadoras – afinal, os senhores queriam “modernizar” a Princesa do Sertão. Como em quase todo o país, a abolição em Uberaba não foi acompanhada de nada que garantisse de fato a emancipação, a reparação ou sequer a sobrevivência da população negra na cidade. Aconteceu o oposto: a expulsão dessa população dos centros se intensificou no começo do século 20.
“A população pobre, seja negra, seja branca, estava indo a reboque. Ela participou só com a força de trabalho. Nas decisões, ela ficava de fora (…) tem um período, principalmente no final do século 19 e começo do 20, que foi o período da higienização. Esses pobres que moravam no centro, eles são expulsos, eles não são bem-vindos ali. A Igreja do Rosário ficava em plena avenida onde hoje é a Getúlio Vargas, e ela foi demolida em 1924, porque os caras não podiam mais ficar batendo caixa ali, não. (…) A cidade estava crescendo, mas quem eram os beneficiários?”
João Eurípedes de Araújo, historiador do Arquivo Municipal de Uberaba e filho de ferroviário.
Com a EFOM, Uberaba fica em Minas
A relação do Triângulo Mineiro com o restante do estado tem rusgas históricas. A região chegou a pertencer a Goiás no século 18 e foi disputada por São Paulo, mas, em 1816, por decisão do rei D. João VI, passou a pertencer a Minas Gerais. Desde então, a cidade testemunhou diferentes movimentos separatistas.
A chegada da linha da Mogyana em 1889 reforçou a conexão do Triângulo com São Paulo e enfraqueceu ainda mais a relação com a capital de Minas. Temendo um movimento separatista, o governo do estado de Minas Gerais assinou, em 1906, o Decreto n. 6.201, determinando a extensão da Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM) até a região do Triângulo – mas ainda não se determinava a chegada até Uberaba. Mais de uma década depois, a demora da construção dos prometidos trilhos e a interrupção da linha em Araxá motivaram uma nova onda de descontentamento e de movimentos separatistas. Em resposta a esse descontentamento, a EFOM foi estendida de Ibiá a Uberaba e inaugurada no dia 15 de novembro de 1926.
Futuro/Passado
Enquanto alguns se admiravam com o “futuro” chegando, outros já começavam a cultivar nostalgia daquela pequena e tranquila Princesa do Sertão.
“E o trem avançava. Foram aparecendo primeiro as quintas, os arrabaldes, as enormes oficinas da Companhia Mogyana e depois, por fim, a velha plataforma da estação por mim tantas vezes pisada e com aquela mesma concorrência tradicional de sempre. E desde aquele momento em que eu tomei o carro, desde aquele momento em que estendi o olhar indagativo pela rua do comércio afora, a minha admiração cresceu a ver a cidade das minhas aspirações tão diferente, tão outra. Uberaba de hoje não é a mesma Uberaba de há uns anos atrás. O ritmo ardente do progresso vibrado pelas picaretas de aço e pelo rodar contínuo dos prelos transformou aquela vaga Farinha Podre, de que poucos se recordam, em uma cidade moderna e próspera, onde a civilização e a elegância do bom gosto artístico encontram vasto campo para o seu rápido desenvolvimento. E se não, que significam aquelas magníficas construções que lá se encontram que quer dizer o devotamento ao estudo de cada um daqueles moços entusiastas que lá estão e a elegância com que se aparata ali o belo sexo? (…)”
Rodrigues da Cunha, Revista de Uberaba, 1904.
No Almanaque Uberabense de 1905, o anônimo “E” lamentava:
“Os passarinhos medrosos, momentaneamente posavam-lhes nas longas folhas e, depressa, soltavam o vôo, previdentemente. E meu querido buriti no meio da numerosa companhia, no tempo em que o ferro e o fogo do invasor não havia feito sua aparição nestes felizes sertões da Farinha Podre, parecia gemer, na música de suas folhas agitadas pelo vento, amargas queixas. (……) Só, tristemente só, ele ali ficou fustigado pelo vento, pela chuva, ouvindo o estranho sibilar na locomotiva, em vez da doce língua dos primitivos homens, e do pio plangente da perdiz. Ele ia pagar também seu tributo à civilização. Outros homens, falando outra língua, vieram um belo dia, assentar sua tenda de trabalho nas cercanias do destronado rei. A respeitosa distância, a picareta gemia surdamente na terra… poderosos, não tereis o mesmo fim?”.
Quando visitou Uberaba em 1892, o frade dominicano Étienne-Marie Gallais relatou:
“(…) Uberaba, escolhida para sede do primeiro convento de nossa missão, é uma cidade relativamente jovem. No início deste século, o território que ocupava ainda era quase deserto. Hoje, a ferrovia chega até lá; ela é um importante centro comercial e, embora a população quase não ultrapasse de seis a sete mil almas, os uberabenses veem o futuro com as cores mais alegres e aspiram aos destinos mais altos. Eles chamam a cidade de “Princesinha do Sertão” com sua aparência campestre, porque a arte ainda não a embelezou com seus adornos falsos, que roubam da natureza tudo o que faz seu charme e sua beleza. Até recentemente, suas casas, vistas de fora, tinham uma aparência bastante alegre, em sua maioria de andar único, com paredes de adobe, sem piso para cobrir a nudez do solo, nem forro para esconder as telhas. Hoje, no entanto, algumas novas construções estão aqui e ali no meio das residências rústicas construídas pela geração anterior, e mostram com orgulho suas paredes de tijolos que às vezes sustentam um segundo piso. As ruas, que ignoram solenemente a ajuda dos engenheiros, seguem virgens de pavimentação; elas são periodicamente esburacadas pelas chuvas e, em certos lugares, o viajante encontra atoleiros perigosos”.