A Serra de São José
Quem chega a Tiradentes já é logo capturado pela beleza da Serra de São José, que carrega o nome antigo da cidade: “São José del-Rei”. Nas suas encostas foram encontradas as primeiras pepitas de ouro e de outros metais preciosos, que continuariam sendo garimpados por mais de 100 anos. Além do ouro, também foi encontrado na Serra o mineral quartzito, utilizado pelos escravizados para construir os calçamentos de Tiradentes.
A Serra tem importância histórica, cultural, arqueológica e ecológica para a região. Com extensão de 15 km², abrange Tiradentes, Coronel Xavier Chaves, Prados, Santa Cruz de Minas e São João del-Rei. No território identificam-se dois biomas: a Mata Atlântica e o Cerrado, com nascentes e quedas d’água, como o Bosque de Mãe-D’Água. Na década de 1970, iniciou-se um processo de proteção da área; em 1990 foi criada a Área de Preservação Ambiental (APA) São José. Seu objetivo é prevenir a degradação causada por mineração, desmatamento e queimadas, protegendo e conservando os recursos hídricos, a flora e a fauna silvestres.
Matriz de Santo Antônio e a Serra de São José. Miguel Aun, década de 1930. Acervo digital Olinto Rodrigues dos Santos Filho, disponível no Facebook. Livro “Tiradentes, cidade singular e romântica”, 2019.
Turismo na Serra
A Serra de São José é a moldura da cidade de Tiradentes, um importante destino turístico. É possível realizar atividades de ecoturismo, como nadar em cachoeiras, fazer caminhadas e percursos de bicicleta. Dentre as principais trilhas da região, destacam-se a do Mangue, do Carteiro e a Travessia. A Serra também conta com mirantes e atrativos naturais, como a Cachoeira de Bom Despacho e a Cachoeira do Mangue. A biodiversidade na Serra se destaca, pois serve como morada para diversas espécies de libélulas. Para proteger esses insetos, em 2004 foi criado o Refúgio Estadual de Vida Silvestre Libélulas da Serra de São José, local que abriga 55% das libélulas encontradas em Minas Gerais.
Casa das Águas. Clarice Flores, 2024. Acervo Agência de Iniciativas Cidadãs – AIC.
Turismo na Serra São José. Clarice Flores, 2024. Acervo Agência de Iniciativas Cidadãs – AIC.
Rio das Mortes, contador de histórias
O rio das Mortes acompanha a estrada de ferro e corre a uma distância de 100 metros da Estação Tiradentes. Essas águas foram cenário de acontecimentos históricos marcantes e testemunharam séculos da vida cotidiana que se passou às suas margens. O som de sua correnteza pode nos contar histórias vividas em diferentes momentos do passado e que nos permitem entender mais sobre esse lugar. Venha conhecer algumas das histórias que o rio das Mortes nos conta!
Pontilhão sobre o rio das Mortes no ramal de São João del-Rei à Águas Santas. Autoria desconhecida, década de 1940. Livro Águas Santas, memórias de uma época em nossos corações, Maria do Carmo Lopes de Oliveira Braga, 2019.
Rio das Mortes… esse nome chega a arrepiar! Tanta morbidez se justifica em diferentes histórias, que diferem entre si, mas que, no entanto, não divergem. Inclusive, é possível até dizer que se complementam. A partir delas é possível tensionar não só o porquê do nome rio das Mortes, mas o contexto violento da região no início do século 18, envolvendo a exploração do ouro, as disputas pela terra e a dominação dos povos originários.
Há quem diga que, na época das incursões para desbravar a região, conhecidas como bandeiras, havia um porto para pequenas embarcações nas margens do rio, que ficou conhecido como Porto Real da Passagem, entre Santa Cruz de Minas e São João del-Rei. Ali aconteceram muitas mortes, pois o local era cercado de árvores e servia como esconderijo para armar emboscadas, assaltos e roubos de carga das embarcações, incluindo alimentos e ouro, ou para tomar à força os indígenas Cataguases que haviam sido capturados por outros bandeirantes. Uma outra história diz que Tomé Portes Del-Rei, um dos primeiros bandeirantes paulistas a ocupar a região, passou a cobrar pedágio para a travessia do rio das Mortes pelo Porto Real da Passagem. Para não pagar o pedágio, muitas pessoas tentavam atravessar o rio a nado e acabavam levadas pela correnteza e morrendo afogadas. Conta-se também que o rio passou a ser assim nomeado por ter sido cenário da Guerra dos Emboabas, quando paulistas e estrangeiros disputaram violentamente as minas de ouro da região, deixando um rastro de muitos mortos.
O rio das Mortes pode ser o início de uma viagem de barco até o mar! Rios nunca existem sozinhos. Desde as matas de suas nascentes, eles correm e vão recebendo as águas de outros rios menores; assim vão se unindo e crescendo até que chegam a um rio principal, que deságua no mar e forma, assim, um conjunto de rios que se interligam até o oceano – o que chamamos de bacia hidrográfica. O rio das Mortes é o principal afluente do rio Grande, que corre para o sul do Brasil e faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio da Prata, com desembocadura no Oceano Atlântico, entre a Argentina e o Uruguai. É uma das maiores bacias da América Latina!
Por se conectar com o rio Grande, o que possibilitou rotas navegáveis desde as minas até o sul do continente, o rio das Mortes teve importância econômica e política, considerando os interesses da Coroa Portuguesa no século 18, inclusive no nome à grande Comarca do Rio das Mortes. A EFOM em seu princípio também possuía uma rota de navegação pelo rio. No final do século 19, a companhia inaugurou a navegação fluvial, que seguia pelo rio das Mortes desde Antônio Carlos até seu encontro com o rio Grande, chegando ao Porto de Ribeirão Vermelho. As linhas férreas, porém, estavam sendo expandidas. Isso se tornou muito oneroso para EFOM, e foi necessário encerrar as atividades nos rios Grande e das Mortes.
Um dos principais afluentes do rio das Mortes, o rio Elvas nasce na Serra da Mantiqueira e corre por cerca de 80 km até a divisa entre Tiradentes e São João del-Rei, onde deságua. Na época da chegada da EFOM, foi necessária a construção de um pontilhão que permitisse a travessia do rio entre as duas cidades. Entre 1879 e 1881, portanto, levantou-se o maior pontilhão dos arredores, com estrutura de ferro, dormentes de madeira e trilhos importados da Inglaterra. Cinco pilares de pedra sustentavam a ponte, três dentro do rio e dois na parte seca. No centro dos trilhos foi colocada uma base longitudinal de madeira, para que fosse possível fazer a travessia também a pé. O pontilhão sobre o rio Elvas é um dos poucos que preserva seu estilo e que ainda está em uso. O passeio de maria-fumaça entre Tiradentes e São João del-Rei permite não só vê-lo, como também vivenciar essa travessia histórica.
Já no início do século 18, o rio Elvas era popularmente conhecido como um dos marcos territoriais entre os municípios de Tiradentes e São João del-Rei. Desde sua formação, o Arraial Velho do Rio das Mortes (Tiradentes) e o Arraial Novo do Rio das Mortes (São João del-Rei) disputavam o domínio de algumas terras. Após décadas de disputa e já após serem elevadas à condição de vilas, ficou definido que a Vila São José del-Rei seria “do rio Elvas pra cá”. Aos finais de semana, era comum que as famílias tiradentinas fizessem caminhadas até o pontilhão. No entanto, atravessá-lo era arriscado: se o trem viesse, não havia local seguro para que pedestres esperassem por sua passagem. Como parte do Complexo Ferroviário de São João del-Rei e Tiradentes, o Pontilhão do Rio Elvas foi tombado em 1989. Por questões de segurança relacionadas a problemas estruturais em decorrência da força da correnteza do rio, os pilares centrais precisaram ser retirados e substituídos por novas estruturas que replicam os originais.
Era de ouro
A exploração do ouro em Minas Gerais foi um dos momentos mais importantes do período colonial brasileiro. Em São José del-Rei, atual Tiradentes, o ciclo do ouro aconteceu no início do século 18.
“O forte de Tiradentes no século 18 era ouro. Dava ouro em superfície. Por isso que tem uma igrejinha aqui, que chama Igreja de Santo Antônio do Canjica, porque dava pepita do tamanho de um grão de milho. Devido ao tanto de ouro, cresceu só a parte central da cidade, que é a parte que está preservada. Os bairros hoje em torno de centro eram tudo mato. Havia uma casa ou outra, uma fazenda aqui, outra lá. Mas o que desenvolveu mesmo foi a parte central. Tinha muitos escravizados e tirava muito ouro. Aí depois o ouro fracassou e a cidade parou no tempo.”
João Rosa da Silva Filho, morador de Tiradentes e ex-funcionário da Fábrica Cerâmica Progresso Industrial Ltda.
Vista parcial da cidade, 1921. J.B. Ramalho, sem data. Livro A Matriz de Santo Antônio em Tiradentes. Acervo IPHAN, 2011.
O fim dos anos dourados
No final do século 18, sinais de esgotamento das pedras preciosas começaram a surgir. Com a chegada do século 19, muitas pessoas que haviam enriquecido com a extração de metais preciosos foram para o Vale do Paraíba, em São Paulo, onde passaram a cultivar café. Com esse cenário, a economia de São José mudou: tornou-se agrícola e baseada na criação de gado. Tentativas de gerar renda para a população ocorreram com a instalação de fábricas de tecidos e com a chegada de uma companhia de mineração inglesa, a General Mining Association, mas sem sucesso. Durante muitas décadas, Tiradentes permaneceu uma cidade decadente. Pode-se dizer que nem mesmo a chegada do trem a São José del-Rei, em 1881, contribuiu para modificar esse cenário. O declínio econômico da cidade de Tiradentes perdurou até a metade do século 20.
Cidade fantasma
Muitos moradores precisaram sair da cidade para arrumar trabalho, e o principal destino foi São João del-Rei. Nesse período, muitas casas e casarões foram abandonados, demolidos ou abandonados em ruínas. Esse foi um dos motivos do tombamento do núcleo histórico de Tiradentes, compreendido como conjunto arquitetônico e urbanístico, em 1938, pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), depois da visita dos modernistas paulistas à cidade. Ao contrário do que ocorreu em Tiradentes, após o esgotamento dos metais preciosos, São João del-Rei não sofreu uma estagnação econômica. A cidade tornou-se um polo de produção e de distribuição de mercadorias e alimentos. No início do século 18, São João del-Rei já se caracterizava pelo dinamismo econômico e era conhecida como importante entreposto comercial entre Minas Gerais e a corte no Rio de Janeiro.
CASARIO NA RUA DA CÂMARA COM TORRES DA MATRIZ DE SANTO ANTÔNIO AO FUNDO. W. J. Craig, 1948. Livro Tiradentes Minas Gerais Imagens, IPHAN, 2010.
“Em Tiradentes a vida é lenta. Não há ruas resplandecentes de luzes, de festas feéricas e convulsões dos cérebros industriais ou comerciais. Há escassez de vida. Das ruas solitárias exala um hálito de ruínas. E se os governantes não cuidarem a tempo da tradicional cidade, dentro em pouco, nada mais restará desse monumento histórico senão ruínas e ruínas… E então só ouvirão o gemido dos velhos paredões que desabam e o soluço das tradições que se desfazem.”
José Bellini dos Santos, 1941, Monografia Tiradentes: Serviço Nacional do Recenseamento.
“Na década de 1920, com a visita e a percepção dos modernistas sobre as cidades mineiras, incluindo Tiradentes, surge a discussão sobre preservação e tombamento. Com isso, veio diversos outros debates, como construção de uma identidade nacional. A partir disso, acontece o tombamento, em 1938, do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Tiradentes, que estava em processo de perda das suas edificações, pois não havia condição de manter ou não tinha a percepção da necessidade de manutenção, como a gente tem hoje, como o restauro.”
José Maurício dos Santos, auxiliar institucional do Escritório do IPHAN em Tiradentes.
A esperança da cerâmica e da prata
As inovações no campo da construção civil, unidas à expansão da malha ferroviária no Brasil, estimularam o surgimento de economias industriais em locais afastados dos grandes centros urbanos, inclusive na cidade de Tiradentes.
Após a chegada da EFOM, instalaram-se em Tiradentes extrações de matéria-prima e fábricas de materiais voltadas para a construção civil. No entorno da estação ferroviária existiam duas fábricas de cerâmica e uma fábrica de cal. O caulim, matéria-prima utilizada na fabricação de louças, tintas e cimento, era extraído da Serra de São José e tratado próximo à estação.
Entre 1950 e 1960, a economia da cidade recebeu também novos incentivos econômicos com a produção de joias, utilizando a prata. Essa atividade atraiu inúmeros artesãos e aqueceu a economia local.
Porém, com a intensificação da industrialização brasileira e a concorrência de fábricas maiores, que centralizavam a produção e distribuição a custos menores, as pequenas produções locais tornaram-se inviáveis.
Locomotiva se aproxima da Estação Tiradentes; à esquerda da linha, a Fábrica Cerâmica Progresso Industrial Ltda. Ramiro Nascimento, 1981. Acervo pessoal.
Locomotiva em frente à Estação Tiradentes; à direita da linha há algumas edificações, dentre elas o depósito de caulim. Ramiro Nascimento, 1981. Acervo pessoal.
“Todas as mulheres da casa da mamãe e todos os homens, faziam pulseirinhas tipo de prata, colocavam frutinhas de abacaxi, de abacate, faziam aquelas pulseirinhas. Todo mundo comprava as pulseirinhas. Não era de prata, era de alpaca, mas a gente falava que era de prata. E tinha gente de longe que vinha comprar essas pulseirinhas, então as pessoas que faziam chegavam até ter problema de vista. Ficava na lamparina fazendo aquelas correntes e essas pulseirinhas.”
João Bosco Barbosa, aposentado, filho de Chefe da Estação de São João del-Rei.
“A cerâmica vendia telha, tijolos, vendia essas coisas. Naquela época, empregava aí uma média de umas cem pessoas, né? Tinha areial com essa areia que eles tiravam da Serra, e preparavam o que vendia. Então tiravam essa areia, preparavam e levavam para fora, para fazer vidro, louça. E tinha o caulim, também. Tirava tudo nessa Serra. Hoje nada disso funciona mais.”
João Rosa da Silva Filho, morador de Tiradentes e ex-funcionário da Fábrica Cerâmica Progresso Industrial Ltda.
O turismo e o trem turístico
Entre 1960 e 1970, Tiradentes começou a se transformar em destino turístico devido a sua arquitetura, cultura e natureza. Acordos foram firmados para a restauração de casas e casarões abandonados. Alguns interessados, como a Sociedade Amigos de Tiradentes (SAT), e estímulos do diretor regional da TV Globo em Minas Gerais, Yves Gomes Ferreira Alves, incentivaram a preservação dos edifícios históricos. A Fundação Roberto Marinho, por meio de parcerias diversas, executou vários projetos de restauração e revitalização na cidade. Novelas, séries, mostras e festivais culturais contribuíram para consolidar a posição turística de Tiradentes. A maria-fumaça tornou-se importante atração desde 1985, conectando São João del-Rei a Tiradentes. Desde 2001, a cidade pertence à rota da Estrada Real, dentre outros circuitos turísticos. Um ponto de atenção é o processo de gentrificação: quando moradores antigos acabam sendo afastados das áreas centrais para a periferia da cidade devido à especulação imobiliária.
CONJUNTO ARQUITETÔNICO E URBANÍSTICO NA RUA DIREITA, COM A SERRA DE SÃO JOSÉ AO FUNDO. G. Ferrez, 1948. Livro Tiradentes Minas Gerais Imagens, IPHAN, 2010.
“Tiradentes já tinha vocação pelos casarões, porque são casarões bonitos, as igrejas, chafarizes, museus…faltava uma propaganda, um marketing. Aí veio morar aqui um diretor da Globo Minas [Yves Alves]. Já até morreu, ele está sepultado no cemitério da Matriz de Santo Antônio. Aí ele gostou muito de Tiradentes e fez um marketing. Teve uma época aqui que parecia que era quintal da Globo com produção de novelas, como Maria Moura, Rabo de Saia, Hilda Furacão.”
João Rosa da Silva Filho, morador de Tiradentes e ex-funcionário da Fábrica Cerâmica e Progresso Industrial Ltda.