UM DIA SEM FESTA, MAS A SER CELEBRADO!
A inauguração da linha seria feita pelo então imperador Dom Pedro II, e a cidade de São João del-Rei o aguardava com uma grande festa e, em Tiradentes, a expectativa era enorme. As pessoas vestiram suas roupas mais bonitas e elegantes. Porém, o Ministro da Agricultura, Buarque de Macedo, que acompanhava o imperador na viagem, passou mal e morreu repentinamente em São João del-Rei, fazendo com que todas as festividades fossem canceladas. Dom Pedro II inaugurou a estrada e visitou a Estação de Tiradentes, mas de forma discreta.
E foi assim que nossa história começou: um dia sem festa, mas que hoje podemos celebrar! Depois disso, o trem de ferro, ou trenzinho como muitos carinhosamente o chamam, passou a fazer parte do cotidiano, do trabalho, dos casos de amor, das famílias, dos sonhos… da vida das pessoas!
Cotidiano na Estação Tiradentes. Ramiro Nascimento, 1982. Acervo pessoal.
Simplicidade nas formas, elegância nos detalhes
Na época da inauguração da EFOM, Tiradentes era uma cidade rural, sem grande relevância econômica para a região. A estação ferroviária, portanto, é pequena, e sua arquitetura é singela. De estilo eclético, ela segue o modelo das estações ferroviárias inglesas situadas no campo, formada por uma edificação em alvenaria, destinada às atividades sociais da estação, e por uma plataforma coberta para embarque e desembarque dos passageiros.
Apesar da simplicidade de sua arquitetura, a estação conta com detalhes ornamentais marcantes, como os beirais da cobertura da plataforma, cuidadosamente acabados com lambrequins de madeira recortada, além de um jardim com influências da arquitetura paisagística clássica, de traçados ortogonais, canteiros circundados por bordaduras, centralizados por plantas ornamentais ou nativas e uma fonte de concreto no centro.
A Estação Ferroviária de Tiradentes é patrimônio protegido e tombado pelo IPHAN em 1989, fazendo parte do Complexo Ferroviário de São João del-Rei.
“A Estação Tiradentes é uma estação rural, está afastada do contexto arquitetônico setecentista do Centro Histórico da cidade. É muito mais simples que a de São João del-Rei, mais simples do que a de Prados. Ela se assemelha mais com a de Ibituruna, fazendo parte desse conjunto de pequenas estaçõezinhas que ficavam no campo.”
“O trem está na música, na pintura, no samba, está em todas as manifestações artísticas! Para a arquitetura ele é muito importante. Aqui, especialmente, a ferrovia chega com a arquitetura eclética, que vai se impor de maneira muito elegante. Na região temos belíssimas edificações ecléticas, influenciadas pela arquitetura ferroviária. É um universo cultural muito complexo, muito rico!”
Luiz Antonio da Cruz, professor e pesquisador, morador de Tiradentes.
“Essa memória ferroviária mexe muito comigo, porque era tudo muito bonito, tinha uma arquitetura própria, uma escala própria, uma proporção própria, porque era tudo construído dentro de um projeto muito maior. Então há uma estética, uma proporção, uma espacialidade que não se vê mais.”
Maria José Boaventura, artista visual, ilustradora e autora, professora de artes e moradora de Tiradentes.
Estação Tiradentes vista de frente. É possível ver os lambrequins que acompanhavam o telhado da Estação. Autor desconhecido, 1920. Acervo Hugo Caramuru
Estação Tiradentes e Locomotiva 42. Mário Arruda, 1984. Acervo pessoal.
O estilo arquitetônico que chegou com a ferrovia
O ecletismo é um estilo arquitetônico que surgiu em meados do século 19 e teve forte influência até os primeiros anos no século 20. A arquitetura eclética se relaciona diretamente com a ferrovia, pois é, assim como ela, um reflexo do seu tempo: desde a Revolução Industrial, do desenvolvimento das máquinas e dos avanços na área da engenharia, novos materiais como o aço e o vidro foram incorporados ao fazer arquitetônico, assim como o cimento e a cerâmica se tornaram mais acessíveis, com mais versatilidade de uso.
A disseminação dos materiais industrializados possibilitou o emprego de novas técnicas construtivas. Foi aí, por exemplo, que a alvenaria passou a ser largamente utilizada nas casas, que eram em sua maioria erguidas com técnicas vernaculares, como taipa de mão e pau a pique.
Como esses materiais eram novidade, seu uso era experimental, e eles foram sendo incorporados a tendências arquitetônicas anteriores, como a clássica, barroca e gótica. É, portanto, um estilo de transição, que mistura as principais características de construções antigas e incorpora às obras as novidades industriais.
As estações ferroviárias construídas em estilo eclético influenciaram a popularização dessa linguagem, com empenas voltadas para a rua, molduras de massa nas portas e janelas e lambrequins nos beirais, contrapondo a arquitetura colonial que, até então, era o estilo mais seguido.
Paquerar na Estação
Tiradentes passou a ser abastecida por uma rede estável de energia elétrica por volta de 1957, o que possibilitou que as pessoas frequentassem espaços públicos após o entardecer. A partir disso, um novo movimento se inseriu na rotina da estação Tiradentes: o footing. A palavra de origem inglesa significa “passeio”, “caminhada recreativa”.
O trem noturno saía da Estação de São João del-Rei aos finais de semana por volta das 19h30, com destino à Barbacena e primeira parada em Tiradentes. O trem vindo de Barbacena passava por Tiradentes por volta da mesma hora. Ali, adolescentes e jovens de ambas as origens desciam do trem para passear e paquerar as moças e moços tiradentinos que, por sua vez, já aguardavam nos jardins e na plataforma da estação. A alegria da juventude era esperar o trem. Esses encontros de jovens na estação, chamados pelos antigos moradores de footing, eram a principal forma de encontro e lazer desses adolescentes. A partir das paixões surgidas ali vieram namoros, casamentos e famílias.
Pessoas aguardam o trem na plataforma da Estação Tiradentes. Autor desconhecido, sem data. Acervo Hugo Caramuru
A Estação vista pelas crianças
Todo movimento e alegria no entorno da Estação também se estendia às crianças que ali brincavam. Para seus corpos cheios de energia e de mente fértil, a estação era espaço para brincadeira e imaginação. Para elas, o gramado atrás da plataforma podia ser um campo de futebol. A plataforma, de uma ponta a outra, se transformava em uma longa estrada pela qual carrinhos de plástico viajavam. Do outro lado da linha, onde ficava o depósito de caulim, se criava um cenário de faroeste: os ferroviários, com seus uniformes e quepes elegantes, eram heróis.
Os adultos de hoje que andaram no trem durante a infância guardam essas memórias com carinho e emoção e, muitas vezes, com vivacidade e riqueza de detalhes, revelando a importância dessas viagens em suas vidas. Viajar pelos trilhos era mais que uma forma de transporte: era uma experiência marcante e transformadora, pois permitia atravessar as fronteiras invisíveis das cidades vizinhas, ver pela janela novas paisagens, cruzar rios e observar outras pessoas.
“No entorno é que acontecia o footing. Todos vinham passear no final da tarde para receber o trem.”
Luiz Antonio da Cruz, professor e pesquisador, morador de Tiradentes.
“A plataforma era minha cidade. Eu brinquei muito sozinho porque eu sempre gostei de puxar carrinho e eu dividia a plataforma: onde o meu pai ficava trabalhando era Tiradentes; no meio era Santa Cruz de Minas; e lá na ponta era São João del-Rei.”
Waldonier Trindade Fonseca, funcionário público de São João del-Rei e filho de ex-Chefe da Estação de Tiradentes.
“O jardim era muito bonito, muito arrumadinho, e eu brincava muito lá. Continuando ali, tinha outro gramado seguindo a plataforma onde jogava bola que, para mim, era um campinho de futebol.”
Waldonier Trindade Fonseca, funcionário público de São João del-Rei e filho de ex-Chefe da Estação de Tiradentes.
“No Dia das Crianças, as escolas davam uma viagem pras crianças irem no trem. Eu era criança tinha uns 7 anos. Eu lembro quando fui, ganhamos uma garrafinha de refrigerante, “caçulinhas”, e um pãozinho com salame. Lá, saía um pouquinho do trem, brincava, as professoras contavam histórias.”
Geralda Sueli Guimarães Silva, moradora de Tiradentes.
Tatu com Repolho x Sabiá com Farinha
Com histórias diferentes que fazem de cada uma delas cidades únicas, as vizinhas São João del-Rei e Tiradentes cresceram relacionadas. A chegada do trem facilitou muito o trânsito de moradores e mercadorias de uma à outra, estreitando ainda mais esse vínculo.
Uma certa rivalidade se instaurou entre as cidades, algo que vinha desde suas formações, quando ainda tinham condição de vila, e se estendeu e transformou ao longo do tempo. Nos séculos 19 e 20, essa rivalidade já não era mais político-territorial como no século 18, mas se expressava na cultura popular e em práticas cotidianas.
A tradição oral registra que era comum que os moradores de ambas as cidades, principalmente jovens, colocassem apelidos jocosos em quem vinha da cidade vizinha. “Tatu com Reponho” era como os são-joanenses chamavam os tiradentinos que, por sua vez, os chamavam de “Sabiá com Farinha”. Não se sabe precisar o porquê desses apelidos, mas acredita-se que sejam referências às práticas alimentares locais da época.
“O pessoal de São João del-Rei vinha pra Tiradentes, para o footing. E as meninas em vez de namorar os meninos daqui namoravam com os de lá, de São João. Isso causava um desconforto muito grande. Quando estavam no trem, voltando para São João, eles começavam a gritar para os rapazes de Tiradentes: “Tatu com Repolho!”, e os de Tiradentes gritavam de volta: “Sabiá com a Farinha!”. Um dia eles descarrilaram os vagões do trem, a máquina foi embora e os meninos ficaram. E aí foi uma pancadaria só! E isso quem contava é o Antônio Conceição. Ele passava as férias aqui em Tiradentes. Ele contava muitas histórias.”
Luiz Antonio da Cruz, professor e pesquisador, morador de Tiradentes.
A estação que era casa
A Estação Tiradentes faz parte da história de algumas famílias da região por ter sido seu lar durante anos. Devido à sua função de gerir o espaço e chefiar todos os demais empregados envolvidos na manutenção das atividades da estação ferroviária, os Chefes de Estação da EFOM geralmente moravam nas estações com suas esposas e filhos, caso tivessem.
As famílias dividiam espaço com o local do trabalho e viviam imersas no ambiente ferroviário, da mesma forma que o lugar, projetado e construído para receber atividades sociais, se moldava para cumprir também função de lar. As salas hoje ocupadas pela exposição Estação de Memórias já foram espaços domésticos e familiares íntimos, como quartos de dormir. No jardim externo, essas famílias mantinham pequenas criações de galinhas, porcos, árvores frutíferas e flores. Há relatos sobre a existência de fogões a lenha e tanques para lavar roupa.
“Moramos na Estação mesmo. Antigamente o Chefe de Estação morava na Estação com a família, porque não tinha como eles alugarem casa. Tinha também as casas do pessoal que trabalhava na Turma, mas o Chefe de Estação morava no próprio local. A Estação era pequena, mas a gente vivia. Na parte da frente tinha dois quartos. Aí tinham minhas irmãs, que eram oito mulheres, nos quartos da frente, um irmão mais velho no quarto do meio. Eu sofria de asma, então tinha que ficar perto da minha mãe. Eu dormia num quarto perto da minha mãe, dividido por um biombo, e tinha uma sala.”
Waldonier Trindade Fonseca, funcionário público de São João del-Rei e filho de ex-Chefe da Estação Ferroviária de Tiradentes.
“Ali tinha parreira, pé de lima, laranja, cana-de-açúcar, minha mãe e minhas irmãs cuidavam, ali naquela parte de trás. Do lado de fora tinha um fogão a lenha. Eu queria ficar perto do meu pai; tinha um negócio do telégrafo que eu gostava de brincar, que saía o registro do código Morse. Tinha um irmão meu que gostava de limpar a bilheteria, polir os objetos para o meu pai, que ficava com a gente; minha mãe tinha muitos filhos, e a gente ficava com ele. Até hoje, se uma pessoa mais velha chega lá na Estação, me perguntam se eu sou o filho do João que trabalhou na Estação na década de 1970. As pessoas ainda me reconhecem.”
Gilberto Luiz Caldas, filho de ferroviário, morador de São João del-Rei.
Onde “seu umbigo está plantado”?
Essa expressão popular, que evoca o local de nascimento de alguém, se refere à prática antiga de plantar na terra o cordão umbilical dos bebês recém-nascidos. Acredita-se que isso traz sorte para a vida da criança e faz com que ela não se esqueça de onde veio.
Antigamente, em Tiradentes, era comum que as mulheres grávidas tivessem seus partos feitos em casa, auxiliadas por parteiras locais. Por isso, algumas crianças filhas dos ferroviários que moraram aqui nasceram dentro da Estação Tiradentes. Uma dessas crianças, Gilberto Luiz Caldas, nascido em 6 de junho de 1975, teve seu cordão umbilical plantado por sua mãe exatamente aqui, junto desta mangueira. Desde então, Gilberto e o pé de manga cresceram juntos.
Esta instalação é uma homenagem a todas as pessoas cujas vidas começaram aqui, que têm o “umbigo plantado” na Estação ou na cidade de Tiradentes, e uma manifestação de desejo que elas tenham sorte e sempre se lembrem desse lugar.
“Aquela árvore, aquela mangueira… As pessoas falam que é centenária, mas não é centenária nada! Ela foi plantada junto com meu umbigo quando eu nasci. Naquela época era costume plantar umbigo – minha mãe plantou o meu. Meu umbigo está na Estação Tiradentes, literalmente.”
Gilberto Luiz Caldas, filho de ferroviário, morador de São João del-Rei.
O Jubileu da Santíssima Trindade, a festa do povo
É uma das maiores festas religiosas da cidade de Tiradentes. Acontece há mais de 200 anos. A festividade é composta de missas, procissões e barraquinhas durante o mês de junho, atraindo milhares de pessoas ao Santuário da Santíssima Trindade. A festa católica, sem se desvincular da tradicionalidade da sua origem, se insere no contexto cultural da cidade de forma ampla, sendo considerada, sobretudo, uma festa do povo tiradentino.
Até o final do século 19, a festividade tinha proporções menores. Com a chegada da linha da EFOM em 1881, que facilitou o acesso à cidade, a festa passou a receber um número maior de visitantes. Havia, por exemplo, horários extras de circulação para o trem no dia festivo.
Devido à sua importância religiosa, social e econômica para Tiradentes e região, em 1962 a Igreja da Santíssima Trindade tornou-se Santuário e, consequentemente, a Festa da Santíssima Trindade passou a ser reconhecida como Jubileu da Santíssima Trindade.
Festa da Santíssima Trindade em Tiradentes, maio de 1940.
Autor desconhecido, 1940. Acervo Escritório Técnico do IPHAN em Tiradentes.
Festa da Santíssima Trindade em Tiradentes, década de 1940.
Autor desconhecido, 1940. Acervo Escritório Técnico do IPHAN em Tiradentes.
Festa da Santíssima Trindade em Tiradentes, 1939.
Autor desconhecido, 1939. Acervo Escritório Técnico do IPHAN em Tiradentes.
“Eu ficava abismado né, porque Tiradentes era uma cidade muito pacata naquela época, então eu via aquilo ali e ficava: ‘Ué!’. Nossa senhora, aquele fluxo todo de gente indo pra lá, pra cá, pra lá…”
João Rosa da Silva Filho, morador de Tiradentes e ex-funcionário da Fábrica Cerâmica Progresso Industrial Ltda.
“Nós íamos a pé para a Serra. A mamãe com doze filhos subia aquela Serra para ir pra Festa da Santíssima Trindade. O caminho é: você vai subindo até na Serra; quando chega você desce, anda a baixada, passa perto da Cachoeira e depois você chega em Tiradentes. Tudo a pé na Serra, era pra a gente ir na Festa da Santíssima Trindade. A gente levava merenda, levava farofa, levava frango. Mamãe fazia paneladas de comida. Não tinha aqueles lugares, igual aqueles restaurantes, para comer. Era tudo debaixo das árvores. A gente ficava sentado, então era naqueles pastos. Não tinha muita casa. A gente sentava lá para poder merendar e passear. Passava o dia inteiro e, no fim de tarde, voltava a pé de novo.”
Maria Trindade Rezende Souza, moradora do bairro César de Pina.
“A gente pegava o trem e já pagava a ida e a volta. Aí quando nós íamos voltar da Festa da Santíssima Trindade, não tinha lugar no trem. O trem chegava, enchia tudo; nós ficávamos do lado de fora. Aí nós ficávamos e, uma vez, o último trem era meia-noite. Aí o último passou, e nós perdemos a condução. Nós fomos pra casa da nossa tia, que morava lá perto da cadeia velha, pra dormir. Quem era mais esperto entrava. Tinha gente que pulava até pela janela do trem. Quando você via já estava cheio e você ficava. E eu tinha criança pequena, que era o meu filho mais velho, como é que eu podia entrar no meio daquele tanto de gente? Não tinha jeito. Meia-noite era o último, não tinha mais. Aí se você perdesse esse último, você tinha que ficar em Tiradentes.”
Biatriz Dias Bastos Guimarães, moradora de Tiradentes.
“De hora em hora e ia só chegando gente, passando ali naquela praça, subindo e descendo, subindo e descendo. As barracas já começavam ali na praça e iam até lá em cima.”
João Rosa da Silva Filho, morador de Tiradentes e ex-funcionário da Fábrica Cerâmica Progresso Industrial Ltda.
No domingo da festa da Santíssima Trindade, o trem chegava de hora em hora. Os moradores de Tiradentes ficavam espantados diante do desembarque de tantas pessoas na plataforma da estação. Quem chegava de outras cidades se lembrava de como os vagões vinham e voltavam cheios, sendo às vezes difícil embarcar, e era necessário pernoitar em Tiradentes.
Antes das cinco da manhã, as romarias com famílias e grupos de fiéis chegavam para assistir à primeira missa. Longas filas se formavam para beijar a imagem da Santíssima Trindade e pedir bênçãos. Mais tarde, a procissão que carregava a imagem do Pai Eterno, Divino Espírito Santo e Jesus seguia com milhares de pessoas até a praça central.
Ao longo desse caminho se espalhavam barraquinhas que vendiam variedades, artesanatos, doces, pastéis e frutas, principalmente as mexericas. Plantadas na região por imigrantes italianos, as mexericas, maduras no mês de junho, se tornaram um símbolo da celebração. Os tiradentinos brincam que o Jubileu é a festa da RPM: da Reza, Poeira e Mexerica, fazendo referência à manifestação religiosa, à poeira que se levantava com tamanha movimentação no chão de terra batida e à mexerica, fruta muito vendida e consumida.
O dia a dia em outros tempos
Por volta das 8:30 da manhã, quando o trem vindo de São João del-Rei apitava e surgia na curva se aproximando de Tiradentes, as pessoas já o esperavam na plataforma. Uma mulher carregava um balaio feito de palha trançada, cheio de doces, com pés de moleque, rapaduras e biscoitos de amendoim. Em um cesto, um homem carregava uma porção de queijos artesanais. Um rapaz tinha consigo alguns sacos de fruta; um outro, belas amostras de tecido. Tudo isso seria vendido em Barroso, Antônio Carlos ou Barbacena. Pai e mãe seguravam as mãos dos filhos que olhavam, com empolgação, a máquina se aproximando.
Quando ela parava, todos subiam nos vagões. Os mais endinheirados se assentavam na primeira classe, com bancos acolchoados e macios, enquanto quem não tinha condições financeiras se direcionava à segunda classe, de bancos de madeira, menos confortáveis. Vindos de São João del-Rei, algumas pessoas e caixas de alimentos encomendados desembarcavam.
Um senhor ia até a janela do vagão dos Correios e comprava um jornal com notícias do Rio de Janeiro: queria saber do jogo do Flamengo. De dentro do trem, o maquinista acenava para um grupo de jovens que estava ali para ver o trem passar e em seguida partia, levando cada uma daquelas pessoas a seus destinos. Poucos minutos depois, o trem vindo de Barbacena parava no mesmo local.
Cenas como essas se repetiam ao longo dos dias de semana na Estação Tiradentes. Os horários dos trens diurnos eram aproximadamente às 8:30h, 10:30h, 13:30h, 17:30h. O último trem, chamado de trem noturno, passava aqui por volta das 20:30h. Depois dele, todos retornavam às suas casas, e o Agente de Estação apagava os lampiões. Tudo ficava escuro exceto pela fogueira acesa, às vezes por povos ciganos, outras por soldados do Exército que montavam acampamento no entorno à estação – e pela lua que clareava o céu.
No dia seguinte, mais uma vez, tudo se repetia. A linha de ferro funcionava com organização e disciplina. Na pequena cidade de Tiradentes, o trem orientava o ritmo da rotina das pessoas, e era em torno da estação que a vida acontecia.
“Outra coisa que eu gostava muito é que da Estação de Tiradentes a gente via o céu. Foi quando eu aprendi a ser apaixonado pela lua. Quando a gente vinha para a Estação à noite, a gente vinha na escuridão, mas era um barato, porque eu gostava de ver a lua, principalmente quando tinha lua cheia. Era um espetáculo!”
Waldonier Trindade Fonseca, funcionário público de São João del-Rei e filho de ex-Chefe da Estação Ferroviária de Tiradentes.
“A gente teve muito contato com os ciganos, que montavam o acampamento deles perto da Estação. Eles faziam fogueira, tocavam violão, e a gente ficava brincando com eles.”
Gilberto Luiz Caldas, filho de ferroviário, morador de São João del-Rei.
“Vendia doce, vendia queijo, rapadura, garrafa de mel, eles vinham vender no balaio. O pessoal comprava de dentro do trem. Naquela época era normal ter balaio. A gente andava com nosso balaio, saía enchendo de fruto que a gente pegava nas árvores.”
Gilberto Luiz Caldas, filho de ferroviário, morador de São João del-Rei.
“Naquela época tudo era em torno da Estação, então um ajudava o outro, como se fosse família mesmo. O pessoal tinha um vínculo, com isso criava amizade. Quando você muda pra um lugar maior, você não vê mais isso. Tiradentes era como um vilarejo pequeno: a gente podia ir na casa de qualquer pessoa, qualquer hora… e lá na Estação a gente tinha um contato muito grande com as pessoas.”
Gilberto Luiz Caldas, filho de ferroviário, morador de São João del-Rei.
“Eu fiz faculdade de 1964 a 1967. O trem passava de manhã para São João del-Rei e voltava de noite para Antônio Carlos, perto de Barbacena. Chamava Sítio. Eu viajei por quatro anos nele à noite, às 19 horas. As aulas da faculdade eram durante o dia. Se eu viesse de ônibus, eu perdia metade da última aula. Então eu vinha de trem: ele saía 7hs 19hs de São João del-Rei, chegava aqui em Tiradentes, às vezes, 21hs, 21:30hs porque parava na Casa da Pedra para carregar e descarregar.”
Vitória Gomes, aposentada, moradora de Tiradentes.
“Para a moçada de Tiradentes, o trem era um passeio – passear no trem, na estação de trem. Dia de domingo não tinha muita coisa para fazer. Então descia a moçada para ver o trem passar de noite. Via o trem chegar, a gente ficava pra lá, pra cá. Depois que o trem ia embora, a gente subia vindo embora e o trem passando. Eu tinha 16, 17 anos; hoje tenho 83 anos.”
Maria Lúcia Gomes Paolucci, aposentada, moradora de Tiradentes.
“A gente conhecia e, às vezes, a gente não sabia qual trem que estava vindo, então a gente escutava só o barulho, só o apito, mas já sabia qual locomotiva era e se naquela locomotiva estava o maquinista que conduzia. Era pelo jeito de apitar o trem: a gente sabia quem conduzia. Então até isso a gente se acostumou de tanto vivenciar no dia a dia.”
Sergey Portes, aposentado, neto de ferroviário, morador de São João del-Rei.