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O que chega quando o trem chega
O trem de ferro representou um grande salto econômico na cidade, mercadorias chegavam e saiam de São João em uma velocidade como nunca vista antes. Nesse modulo vamos apresentar como o trem modificou a cidade, desde a cultura até as informações vindas da corte do Rio de Janeiro foram responsáveis pela modificação da vida dos sãojoanenses.

Cidade do progresso

Com o trem de ferro, vieram novas ideologias e noções de progresso e desenvolvimento para São João del-Rei, novos hábitos e costumes, novas mercadorias, ideias e modas chegavam com a ida e vinda das pessoas na cidade. Era a chamada “modernidade” que desembarcava na cidade, trazida pela ferrovia. Depois da construção dos trilhos, toda a região foi fortemente reorganizada, tanto do ponto de vista econômico como do territorial. Aumentaram as exportações de produtos, o comércio local foi impulsionado, a indústria têxtil começou a se desenvolver e a criar produtos inovadores. A produção de alimentos também passou a ter uma demanda muito maior. A ferrovia foi essencial, ainda, para o crescimento do tecido urbano, que se desenvolveu ao redor da linha e de seus ramais.

“Mais do que significações econômicas, a ferrovia trazia uma ligação com todas as imagens que mentes provincianas construíam do Rio de Janeiro. Progresso e civilização, com todo o refinamento que se atribuía a estes termos, eram palavras-chave para esta sociedade.

Rúbia Soraya Lelis Ribeiro, no texto As fotografias de André Bello (1879-1941): imagens da modernidade em São João del-Rei, publicado em 2006.

Arrivano gli italiani!

Desde a proibição do tráfico de escravizados, em 1850, a vinda de europeus para o Brasil passou a ser estimulada pelo governo. Os estrangeiros recebiam incentivos diversos, como obtenção de posse de terras e cidadania. Isso era tanto uma alternativa para substituir o trabalho do povo negro nas lavouras como uma violenta tentativa de “embranquecimento” da população. Para São João del-Rei, vieram principalmente famílias italianas. Segundo pesquisas, as primeiras famílias chegaram de trem no dia 3 de dezembro de 1888, desembarcando na Estação Ferroviária Oeste de Minas, e se estabeleceram na chamada Várzea do Marçal, posteriormente denominada Colônia do Marçal. Em 1896, o Estado garantiu a eles a posse de lotes na região. A comunidade italiana atuava especialmente na agricultura, que abastecia o mercado local, mas também trabalhava na ferrovia e nas fábricas de tecidos.

“Para as operações mais complexas, como maquinista, não se empregava escravizado. Ou não empregava negros, mão de obra afro-brasileira. Porque havia a cultura do racismo científico, que nasce no século 19. Então, tinha essa ideia de que os negros não saberiam lidar com tais máquinas, que iam quebrá-las, não saberiam cuidar… Por isso os italianos foram muito empregados, pois eram europeus”.

Relato de Welber Santos, historiador e morador da cidade.

 

Hotel Oeste de Minas

Para acolher a nova demanda do grande número de viajantes que passariam a circular com a chegada da ferrovia, a própria companhia ferroviária criou o Hotel Oeste de Minas. Localizado na Avenida Hermílio Alves, bem próximo à Estação, o estabelecimento prometia aos hóspedes conforto e banhos quentes ou frios. Infelizmente, no dia 21 de agosto de 1917, o hotel foi destruído por um incêndio.

Importado e “moderno”

Grandes pianos para as salas de estar, moedores de carne europeus na cozinha, solários nos jardins, telhas francesas. Foi pelos trilhos que chegaram esses e outros desejados objetos considerados modernos e de grande valor, vindos de diversos países europeus. Antes do trem, por exemplo, não havia pianos em São João, apenas órgãos. Agora com a possibilidade de transportar grandes volumes, a cidade foi inundada por novos produtos e estéticas. Sua paisagem arquitetônica se transformou completamente: a ferrovia possibilitou o transporte de tijolos, estruturas metálicas e novos materiais de ornamentação que passaram a compor o cenário são-joanense.

 

“O modo de construir, o modo de reformar as casas, o uso do ferro mais amplo, tudo isso mudou. Ficou mais fácil importar instrumentos caros. Musicalmente, por exemplo, a chegada o piano gerou um grande impacto na produção musical. Não que já não fosse musical antes, mas o trem facilitou muito a chegada de coisas mais volumosas.”

Relato de Welber do Santos, historiador e morador da cidade.

Cinema e Fotografia

Dentre os vários objetos que passaram a chegar pelos trilhos da EFOM, estavam os materiais fotográficos. Antes, os fotógrafos encontravam grandes dificuldades no transporte de seus equipamentos e na montagem de seus ateliês de revelação. A nova modalidade de transporte desses artigos possibilitou que a cultura fotográfica se espalhasse pela cidade.

Em 1929, foi inaugurado o primeiro cinema de São João, o Cine Capitólio, que pertencia a J. Faleiro & Cia, em sociedade com a companhia de André Bello, imigrante italiano e tradicional fotógrafo local. Essa mesma empresa fornecia rolos de filmes pelos cinemas da região que percorriam os trilhos da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

“Apesar de ser considerada uma cidade barroca, guiada pelos sinos das igrejas, São João del-Rei passa a vivenciar a modernidade através da fumaça da locomotiva, apitos da fábrica, da luz elétrica, do cinematógrafo, do telefone, vivência essa que encontrou na imagem fotográfica uma possibilidade de registro, testemunho e propaganda”.

Rúbia Soraya Lelis Ribeiro, no texto “As fotografias de André Bello (1879-1941): imagens da modernidade em São João del-Rei”, publicado em 2006.

A ferrovia e a comunicação rápida

Com a linha férrea veio também a linha telegráfica. O telégrafo era uma ferramenta de comunicação fundamental da estação, usado diariamente na conversação rápida entre as estações e seus funcionários. Trata-se de um aparelho de comunicação que permite o envio de mensagens a longas distâncias, por meio de eletricidade e do uso do código Morse. Os toques para seu funcionamento são típicos e formam o alfabeto a partir da combinação de pontos, linhas e espaços. A telegrafia foi muito importante na história da ferrovia, já que ela possibilitou a comunicação a longa distância de forma eficiente, tornando o trabalho mais seguro. O telefone assim como o telégrafo foi um dos meios de comunicação importantes durante o funcionamento da ferrovia. Sua invenção ocorreu de forma acidental, quando o cientista Alexander Graham Bell tentava melhorar o funcionamento do telégrafo, que só permitia que uma mensagem fosse enviada por vez, na direção do que ele chamou de “telégrafo múltiplo”.

Desde meados do século 19, a comunicação telegráfica já havia sido possibilitada em diferentes continentes, por meio de cabos submarinos. Podemos observar no mapa a integração que a telegrafia proporcionou, estabelecendo a comunicação direta entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e países como Portugal, Argentina, Áustria, Hungria, Alemanha, Itália, Inglaterra e Estados Unidos.

A notícia da abolição da Escravidão

Tudo vinha de trem, inclusive as notícias. Uma das mais esperadas e comemoradas na cidade foi, sem dúvida, a notícia da abolição da escravidão. No mesmo dia em que foi assinada, em 13 de maio de 1888, São João ficou sabendo da novidade graças ao serviço de telégrafos. Segundo testemunhas, houve bandas de música na cidade e queimas de fogos. No dia seguinte, uma segunda-feira, o povo foi para a frente da estação de trem esperar as malas do correio, que continham a notícia histórica.

“À noite, iluminou-se toda a cidade e repetiu-se a passeata popular, havendo no nosso teatro espetáculo de gala. […] Foi o povo, à frente de duas bandas de música, esperar, na estação, as malas do correio que traziam a publicação da lei áurea, sendo à chegada do trem, saudosos os propagadores da abolição, com salvas estreipitosas, hino nacional e vivas estusiásticos”.

Denilson de Cássio Silva, em seu livro O Drama Social da Abolição. Escravidão, Liberdade, Trabalho e Cidadania em São João del-Rei, Minas Gerais, publicado em 2016.

O apito das fábricas de tecidos

Com a chegada da ferrovia na cidade, se estabeleceram diversas indústrias maiores, como a têxtil, atraídas pela facilidade de escoar os produtos pela estrada de ferro. Com isso, a cidade ensaiava sua entrada para a Era Industrial. Segundo relatos, São João del-Rei contava com seis empresas têxteis que absorviam uma significativa parte da mão de obra local. A cidade começa, assim, uma transição sonora e temporal: deixa de funcionar com a marcação dos sinos das igrejas e começa a se orientar pelos sinais e apitos de trabalho das fábricas e da ferrovia. Algumas das fábricas mais conhecidas foram a São Joanense, que existe até os dias atuais, a Santanense, na Avenida Leite de Castro, que teve três tecelagens, e a Dom Bosco.

“Além da própria ferrovia vieram as indústrias e as tecelagens, que tinham caldeiras a vapor […] Era uma estrutura tanto para escoamento, quanto para a chegada da matéria-prima. A ferrovia foi essencial para existirem essas fábricas”.

Relato de Bruno Campos, pesquisador e morador da cidade.

O Pátio Ferroviário - A Estação

A Estação de São João del-Rei dividia-se em duas edificações distintas. Um dos prédios era usado por passageiros e pela administração da Estação e, no outro, onde hoje está localizado o Museu Ferroviário, se armazenava mercadorias de importação e exportação, como couro de boi e produtos salgados.

No Complexo Ferroviário de São João del-Rei, as duas salas de espera para passageiros não eram organizadas em classes, como nos casos das estações francesas. A divisão se dava por sexo, sendo uma sala, de menores dimensões, destinada às senhoras, e outra, de maiores dimensões, destinada aos senhores.

Sabe por que o teto da plataforma da estação tem esse formato?

A construção, além da beleza estética, foi pensada por causa da fumaça que as locomotivas a vapor soltam durante seu funcionamento. Várias edificações ferroviárias seguem esse modelo de construção: suas plataformas apresentam uma abertura na parte superior do telhado, o lanternim, com objetivo de melhorar a ventilação e a iluminação do espaço.

O Pátio Ferroviário - A rotunda

Essa área era usada principalmente para armazenamento e depósito, com acesso restrito apenas a funcionários do Complexo. O depósito anelar, ou rotunda, foi construído por volta do ano de 1882. Está localizado na área central do Complexo Ferroviário e tem um girador ao centro com 6,5 metros de diâmetro, possibilitando abrigar 24 linhas para depósito.

O Pátio Ferroviário - As Oficinas

A área é formada pelas oficinas de tornearia, carpintaria, ferraria e caldeiraria, que funcionam parcialmente até os dias de hoje e têm o objetivo de reparar os vagões de passageiros e de carga, bem como de fazer manutenção e revisão nas locomotivas de ferro. As oficinas contavam com os chamados “gabinetes de chefia”, que consistiam em pequenas edificações no interior dos galpões, destinadas às funções administrativas dos chefes desses setores.

Estação Chagas Dória

A antiga linha férrea entre São João del-Rei e Tiradentes passava pela atual Rua Amaral Gurgel, onde foi estabelecida uma parada que fazia parte do trecho original de Sítio a Antônio Carlos. Em 1908, essa parada teve seu nome alterado de Matosinhos para Chagas Dória, em homenagem ao engenheiro e diretor da EFOM Francisco Manoel Chagas Dória, responsável pela construção do ramal. Em 24 de agosto de 1908, foi autorizado o prolongamento de Chagas Dória até o Balneário de Águas Santas, inaugurado em 1910. A inauguração desse trecho coincidiu com a do ramal ferroviário Cidade-Matosinhos, com cinco horários de viagem durante a semana e oito aos domingos, feriados e dias santos.

O projeto arquitetônico de Chagas Dória, como conhecemos hoje, só foi inaugurado em 15 de abril de 1911, quando foi necessária uma melhoria na edificação, devido ao grande número de passageiros e de carga na época. Nessa construção, a estação recebeu a sua cobertura feita em chapa de ferro curvo e arremates floreados.

“Este prédio, recentemente demolido, teve relação com a ferrovia, mas acabei descobrindo que a primitiva estação Chagas Dória era em frente à atual, existindo ainda um pedaço da sua plataforma. Essa estação foi ponta do Ramal de Matosinhos, que possuía cerca de 200 metros, até 1910, quando foi inaugurado o ramal das Águas Santas. Em 1911, a estação passou a estar na linha de centro devido à retificação do trecho primitivo entre São João del-Rei e Sítio”.

Relato de Bruno Campos, 2007, no site Estações Ferroviárias.

Avenida Leite de Castro

De 1887 a 1984, a linha principal da Estrada de Ferro Oeste de Minas se estendia na direção noroeste da área urbana da cidade. É notável que essa expansão realizada pela via férrea em 1887 tenha contribuído para o crescimento da área urbana nessa direção.

A Avenida Leite de Castro fazia parte do caminho para a Estação de Aureliano Mourão. A linha férrea foi o primeiro traçado da rota e, posteriormente, vias foram se estabelecendo em seu entorno; a via principal recebeu esse nome em homenagem a Joaquim Leite de Castro, engenheiro da EFOM e vereador na cidade de São João del-Rei. Leite de Castro desempenhou um importante papel na construção de parte significativa das ferrovias da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

Após o fim do transporte ferroviário, os trilhos da EFOM foram retirados da avenida, em 1982. A única coisa que restou foi a estrutura do pontilhão, demolida em 1986 para a construção da ponte rodoviária que está atualmente no local.

Ramal Águas Santas

A importância da comunidade de Águas Santas rapidamente chamou a atenção para a necessidade de integração dessa área com a parte central da cidade de São João del-Rei. Isso por contar com um balneário com águas termais, que são consideradas curativas e promotoras de muitos benefícios à saúde. Em 21 de abril de 1910, foi inaugurado o ramal ferroviário da EFOM que ligava São João del-Rei a Águas Santas. Esse trecho tinha 11,805 quilômetros, e partia da Estação Chagas Dória, no bairro de Matosinhos, cruzando o Rio das Mortes e cortando a Colônia do Marçal, e seguia até o balneário de Águas Santas. Atualmente, em frente ao balneário foi estabelecido o Museu da Casa das Águas, de responsabilidade do Instituto Estadual de Florestas, para preservar a história e a geodiversidade das unidades de conservação da APA São José e Refúgio Estadual de Vida Silvestre Libélulas da Serra.

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