A localização privilegiada às margens do Rio das Velhas fez de Santa Luzia um ponto de parada e assentamento para os primeiros habitantes da região. Foi nesse cenário que uma imagem de Santa Luzia foi encontrada, inspirando o nome da cidade.
As populações indígenas que habitaram o território
Povos da pré-história foram os primeiros habitantes do local que hoje conhecemos como Santa Luzia, embora não se saiba exatamente a qual grupo esses povos pertenciam. Sítios arqueológicos na cidade revelaram pinturas rupestres encontradas em abrigos nas rochas, além de objetos como potes de cerâmica, urnas funerárias, pontas de lanças e machados. Esses registros fornecem informações sobre a rica herança cultural e histórica dos primeiros habitantes da região, indicando para os de origem Aratu-Sapucaí e Tupi-guarani.O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) registrou nove sítios arqueológicos em Santa Luzia. Graças ao trabalho de arqueologia, as evidências pré-históricas puderam ser encontradas em diferentes localidades da região. Os vestígios já foram identificados nas proximidades da Avenida Frimisa, na região da divisa com Taquaruçu de Minas e na região do São Benedito.
URNA FUNERÁRIA DA TRADIÇÃO ARATU-SAPUCAÍ LOCALIZADA NA CIDADE DE BELO VALE, MG. Tarcíso Martins, Jornal Correio de Minas, 2018.
A padroeira e o rio
Foi às margens do Rio das Velhas que, como conta a tradição popular, um pescador com problemas de visão identificou um brilhante objeto. Quando conseguiu alcançá-lo percebeu que era a imagem de Santa Luzia. Ao tocá-la, o pescador teve sua visão restaurada. Esse teria sido o primeiro milagre da santa no local que se tornaria, anos depois, a cidade de Santa Luzia.Outra história de milagre atribuído a Santa, no período colonial, envolve o então Sargento-Mór português Joaquim Pacheco Ribeiro. Ele perdeu a visão e prometeu que se a recuperasse, se mudaria para a localidade mineira. Tendo sua graça alcançada, cumpriu a promessa, mudou-se para Santa Luzia e patrocinou a reforma do templo que, atualmente dá lugar à Igreja Matriz, no Centro Histórico da cidade.
Santa Luzia
Santa Luzia de Siracusa é considerada a padroeira dos olhos e da visão. Seu nome deriva do latim e significa “portadora da luz”. Nascida na Itália, foi martirizada no ano de 304, vítima da perseguição aos cristãos pelo Império Romano. Foi torturada, seus olhos arrancados e, por fim, decapitada, o que a tornou uma mártir da religião. Na tradição católica, acredita-se que seus olhos foram milagrosamente restaurados.
A busca pelo ouro no Rio das Velhas
Na passagem do século 17 para o 18, a Coroa portuguesa incentivou a busca por ouro e pedras preciosas no território brasileiro. Iniciou-se, assim, o movimento das bandeiras, expedições que partiam de São Paulo em direção ao interior da colônia – o desconhecido “sertão”. Lideradas por homens brancos portugueses ou seus descendentes, essas expedições capturavam indígenas para o trabalho forçado e contribuíram para o extermínio de povos originários. A descoberta de ouro em abundância ao longo do Rio das Velhas levou as autoridades portuguesas a estabelecerem o controle da região. O bandeirante Manuel Borba Gato foi declarado Capitão-Mor do Vale do Rio das Velhas, uma posição de destaque para os colonizadores que foram responsáveis por grande dizimação das populações indígenas brasileiras. A bandeira chefiada por Borba Gato encontrou ouro em Sabará e, remanescentes da bandeira, como José Correia de Miranda, percorrendo o rio, teria chegado à região de Santa Luzia por volta de 1692.
FAMÍLIA GUARANI CAPTURADA POR BANDEIRANTE. Jean-Baptiste Debret, 1846. Acervo do Projeto Brasiliana Iconográfica. A obra retrata a violência imposta aos povos indígenas pelos colonizadores. Embora historicamente significativa, ela perpetua uma visão das opressões e ignora a resistência e a agência dos próprios indígenas.
Vocação de entreposto comercial
À margem da estrada que ia de Sabará para o sertão, por volta de 1724, formou-seoutro povoado que recebeu o nome de Santa Luzia.O reino de Portugal considerou o território importante,em função de sua localização geográfica, mais do que pela exploração de ouro. A região ligava notáveis centros mineradores, facilitando a chegada e a saída de mercadorias para diferentes regiões.Essa característica de entreposto comercial influenciou fortemente a formação do núcleo urbano. No topo da colina, onde se estabeleceu o povoado, as estradas se cruzavam formando um “T”: a Rua Direita levavatropeiros que passavam pela regiãoem direção ao Serro e Paracatu, por um lado, e a Sabará, por outro.
“Vê-se, por tudo o que acabei de dizer, que o sertão possui diversos artigos de exportação. No entanto, são duas simples povoações, Formigas e Santa Luzia, perto de Sabará, que se podem considerar como os pontos mais importantes dessa vasta zona… Quanto às peles, os próprios arredores de Formigas poucos fornecem atualmente. Os mercadores da região que com ela comerciam obtém-nas nos arredores do rio São Francisco. O centro desse comércio é atualmente Santa Luzia perto de Sabará, donde fazem remessas para o Rio de Janeiro…importam-se também vários objetos europeus do Rio de Janeiro, em troca do salitre, e de Santa Luzia, lugar de entreposto, em troca de peles… Nos arredores de Santa Luzia e alhures extrai-se da polpa do fruto da macaúba um óleo abundante, que serve para a iluminação e o fabrico de sabão e da amêndoa extrai-se outro óleo bom para alimentos.”
Auguste de Saint-Hilaire – botânico e explorador francês conhecido por suas viagens científicas pelo Brasil durante o século 19.
VISTA PANORÂMICA DA RUA DIREITA, SANTA LUZIA. Autoria desconhecida, século 20. Acervo do IBGE.
Das águas aos trilhos
O traçado sinuoso do Rio das Velhas é marcante na história de Santa Luzia e na memória de seus moradores. As rotas comerciais percorridas pelos tropeiros muitas vezes acompanhavam esse curso.O transporte do algodão é exemplo disso. Quando a indústria têxtil se instalou na região que hoje pertence ao município de Baldim,a produção local de algodão mostrou-se insuficiente para suprir sua demanda. Assim, parte dessa matéria-prima era adquirida no Nordeste brasileiro e trazida ao Sudeste pelo Rio São Francisco.A mercadoria percorria o Rio das Velhas a bordo da embarcação a vapor Saldanha Marinho, nos períodos em que o rio era navegável. O transporte fluvial no Rio das Velhas foi inaugurado oficialmente em 1871 e só foi interrompido a partir de 1893, com a chegada da ferrovia. Já a indústria têxtil em Santa Luzia propriamente, só foi inaugurada em 1928.
VAPOR SALDANHA MARINHO, ANCORADO NO RIO DAS VELHAS, REGIÃO DA FAZENDA DA JAGUARA, MATOZINHOS, QUE PERTENCEU A SANTA LUZIA ATÉ 1923. Augusto Riedel, 1868. Acervo da Biblioteca Nacional, Coleção Brasiliana Fotográfica.
Estação Rio das Velhas
Com a chamada “modernidade”, a era das ferroviaschegava para transformaras dinâmicas comerciais. Os planos de navegação no Rio das Velhas, em Santa Luzia, foram substituídos com a chegada dos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB), que oferecia maior eficiência e velocidade. A partir da inauguração da então Estação Ferroviária Rio das Velhas, o trem de ferro passou a ser o principal meio de transporte da região. Assim como o rio, eleligava o interior de Minas Gerais ao norte do país,conectando pequenas comunidades a centros urbanos emergentes. O nome dado à Estação mostra que, ao longo do tempo, o Rio se firmou como uma importante referência para a identidade local.
Defesa do Rio das Velhas
O Rio das Velhas, uma referência para a formação histórica de Santa Luzia, ainda hoje é fundamental para a vida na cidade. Sua bacia hidrográfica contribui para o abastecimento de água na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e a gestão dos recursos hídricos é uma preocupação importante na atualidade. Diante da necessidade de cuidar e promover um uso adequado das águas, foi criado, em 1998, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas). Trata-se de um órgão de caráter participativo, que envolve representantes do poder público do estado e dos municípios cortados pelas águas do Rio das Velhas, além da sociedade civil. A missão do CBH Rio das Velhas é a construção de uma proposta de sustentabilidade para todo o território que compõe a bacia hidrográfica.Em 2023, o CBH Rio das Velhas lançou a campanha: “Rio das Velhas Eu faço Parte“, que convida a população a questionar sobre o saneamento básico no território da bacia, e sobre como a ausência dele afeta a qualidade das águas.
EXPEDIÇÃO "RIO DAS VELHAS QUE TE QUERO VIVO” . Autoria desconhecida, 2017. Acervo on-line da Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas.
As enchentes na memória
Nem só de boas memórias é construída a relação dos luzienses com o Rio das Velhas. Se, por um lado, suas águas sempre estiveram no imaginário das pessoas como um guia dos caminhos, por outro lado, seus períodos de cheia sempre simbolizaram preocupação para quem morava próximo às margens.A primeira enchente do Rio das Velhas de que se tem notícia teria ocorrido ainda no período colonial. O povoado que se formou na área plana próxima ao rio teria sido destruído pela cheia no ano de 1695, levando os habitantes a se fixarem na parte alta da serra. Esse fato foi decisivo para o núcleo urbano que originou o pequeno arraial, inicialmente denominado Bom Retiro, em referência à mudança de local.
O CUPAÇÃO DA PARTE ALTA, RUA DIREITA COM A IGREJA MATRIZ AO FUNDO. Autoria desconhecida, início do século 20. Acervo do Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte/Inventário do Patrimônio Cultural.
Cheias do bairro da Ponte
As cheias do Rio das Velhas até hoje impactam os moradores da cidade. A população que reside na parte baixa da cidade, especialmente no bairro São João Batista, é a mais afetada. Esses desafios contínuos enfrentados pelos moradores chamam a atenção para as condições de ocupação do território, já que, para além do fenômeno natural da cheia dos rios, a urbanização e a impermeabilização do solo são também fatores que interferem nas cheias. Além disso, muitas vezes elas são potencializadas por ações humanas, como o depósito de lixo nos rios e em suas margens e a ocupação humana em áreas vulneráveis, com pouca atenção dos poderes públicos. Tudo isso aponta para a necessidade de aprimorar a consciência ambiental de forma coletiva.
“Tinha muita foto, mas teve uma enchente em 1997. Foi a primeira vez que eles abriram a represa de Itabirito […] abriram sem aviso, sem nada. A água chegou a dois metros de altura dentro de casa, tem até a marca aqui.” Sandra Gabrich, moradora de Santa Luzia, que frequentava a estação.
“Dezembro chegou chuvoso. O rio, nosso amigo e cúmplice, agora sujo e barrento, estava cada vez mais cheio. No início de janeiro, transbordou. Suas águas invadiram o quintal e foram subindo, barulhentas e ameaçadoras, até atingirem o quartinho. Levaram tudo que ali estava guardado, inclusive as imagens do presépio. Restaram aquelas três da gruta, personagens principais da mais bela história da humanidade. Este ano, tenho certeza de que o presépio estará lá, no cantinho de sempre. Sem as figuras que as águas levaram, é verdade, mas, mesmo assim, o retrato vivo de uma terna lembrança, que enchente alguma, por mais forte que seja, conseguirá arrancar do meu peito.” João Bosco Gabrich Giovannini, morador de Santa Luzia e frequentador da estação, no texto “Lembranças”, de sua autoria.
PRAÇA GETÚLIO VARGAS TOMADA PELA ENCHENTE DO RIO DAS VELHAS. Marília Andrade, 1997. Arquivo pessoal de Marília Andrade.