Quem pegava o trem em Santa Luzia carrega na memória a imagem das “balaieiras“, mulheres que utilizavam a ferrovia diariamente para ir a Belo Horizonte, Matozinhos, Sabará e outras cidades, por onde passava a linha. Em seusii grandes balaios, elas iam vender frutas, legumes, doces e panelas de barro. As balaieiras de Santa Luzia saíam, principalmente, de duas comunidades: Macaúbas e Pinhões.
BALAEIRA ENTRE OS VAGÕES. Autoria desconhecida, século 20. Arquivo pessoal de Maria da Conceição Cruz.
Macaúbas
A região de Macaúbas é bastante conhecida pela existência do Mosteiro de mesmo nome, cuja construção foi iniciada em 1714 e concluída em 1770. O responsável por sua idealização foi Félix da Costa, que saiu de Penedo (AL) e percorreu o Rio São Francisco até o encontro com o Rio das Velhas, chegando a Santa Luzia. O Mosteiro de Macaúbasera uma casa de recolhimento religioso que recebia meninas e mulheres adultas, órfãs e devotas, que desejavam se dedicar à vida religiosa e de reclusão. No século 19, a edificação passou a funcionar também como escola feminina. O colégio encerrou suas atividades no início do século 20, mas o Mosteiro permanece com atividades devocionais até os dias atuais.
Pinhões
A região de Pinhões se localiza a uma distância de 15 km do centro de Santa Luzia. A comunidade rural tem raízes negras, tendo se formado no século 19, a partir do fim do período de escravidão, quando muitas famílias negras se estabeleceram no local. A comunidade recebeu esse nome em razão da presença de araucárias e pinheiros, árvores que produzem o fruto pinhão. As panelas de barro e os produtos da roça feitos em Pinhões ajudavam a compor as mercadorias das balaieiras.
FACHADA PRINCIPAL DO MOSTEIRO DE MACAÚBAS. Izabel Chumbinho, século 21. Acervo do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA-MG.
Depoimentos
“Minha mãe mesmo quando ela pegava o trem ela ia era vender panela, ia pra Raposos, Sabará e ia sempre de trem. A gente ia achando bonito a vista, olhando a janela do trem. E depois saía carregando as panelas pela cidade. ” Maria Geralda, filha de balaieira.
“Nós tínhamos um trem que passava aqui para ir para Belo Horizonte de manhã. Aí nós vamos ter as famosas balaieiras que eu lembro de ser mulheres com saias muito longas, blusas largas e usando turbante. Vicentina Massara, moradora de Santa Luzia e frequentadora da estação.
“De manhã, saía aquele monte de mulher com aqueles balaios na cabeça para vender produtos em Belo Horizonte, e de tarde elas voltavam. Com os balaios vazios, vendiam tudo.” João Bosco Gabrich Giovannini, morador de Santa Luzia e frequentador da estação.
Trem como mercado
Os horários dechegada e partida do trem guiavam o funcionamento de vários comércios da região. É difícil encontrar alguém que frequentou a estação durante os anos 1960 e não se lembre, por exemplo,do cheiro dos pastéis de Dona Vita, que ficava perto da porta da Estação, aguardando os passageiros que também eram seus clientes. Dona Vita era uma pessoa muito importante para a comunidade, sendo lembrada como uma figura carismática que, com sua simplicidade, deixou uma marca duradoura.Outros comércios nas proximidades da Estaçãotambém ficaram na memória de muitas pessoas, como o Armazém Central e o Bar do Anísio.
“[…] praticamente em frente à estação ficava a Dona Vita, uma figura folclórica em Santa Luzia.” João Bosco Gabrich Giovannini, morador de Santa Luzia e frequentador da estação.
“Quando ela faleceu, eu tinha onze anos, mas consegui acompanhar algumas coisas da presença dela. A importância era muita daquela mulher negra, simples, muito querida, muito apaixonante para quem a conheceu.”Katia Regina, moradora de Santa Luzia e bisneta de Dona Vita.
BAR E PENSÃO DO ANÍZIO, LOCALIZADO EM FRENTE À ESTAÇÃO, COM HERMANO VILLA À PORTA. Autoria desconhecida, século 20. Arquivo pessoal de Ítalo Massara.
ANÚNCIO DE HOTEL NAS PROXIMIDADES DA ESTAÇÃO. Revista “A vida mineira”,1908. Acervo do Arquivo Público Mineiro.
O footing - CINEMINHA
A intensa circulação de pessoas na região da estaçãoferroviária deu origem à prática do “footing”, que ocorria na praça em frente à Estação. À tarde, quando o trem chegava, os homens se reuniam ao lado da Estação, enquanto as mulheres passeavam, praticando o “footing” em busca de possíveis namorados.
Essa se tornou uma atividade prazerosa, com as meninas flertando com os meninos, e esses, prontos para interagir. O passeio era permeado por um clima descontraído e alegre, com os olhares atentos e, por vezes, rigorosos da comunidade. A prática refletia a dinâmica social do local e proporcionava um espaço para encontros, flertes e interações entre os moradores.
“A estaçãozinha me traz muitas lembranças, porque é onde eu fazia footing, o que vocês chamam hoje de flerte. Ficava pra baixo e pra cima de braço dado com minha amiga, o nome dela é Neusa Tófani. E a gente ficava passeando. Eu namorei muito.” Regina Célia Giovaninni de Almeida, moradora de Santa Luzia e frequentadora da estação.
“Eu cheguei a participar do footing, os homens ficavam de lado observando e as mulheres passando, andando de baixo pra cima de frente a estação.”Imelda Bernardete Giovanini, moradora de Santa Luzia e frequentadora da estação.
ESTAÇÃO SANTA LUZIA. Autoria desconhecida, primeira metade do século 20. Acervo da Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia – ACCSL.
O telégrafo, os telegramas e o funcionamento da estação
O telégrafo foi um meio de comunicação criado no século 19. Sua chegada ao Brasil está relacionada ao avanço tecnológico e à necessidade de comunicação rápida. Naquele período, o governo imperial buscava integrar todas as partes do país por meio da ferrovia. Ele desempenhou um papel crucial na história das comunicações e foi um instrumento importante para a comunicação na ferrovia. Em resumo, o telégrafo é composto por uma chave eletromagnética, uma bateria, um fio condutor e um receptor. Quando o operador pressiona a chave, um circuito elétrico é fechado, enviando um sinal elétrico ao longo do fio até um outro local. Esse sinal é então recebido pelo receptor e convertido em pontos e traços, que são interpretados pelo telegrafista, para formar a mensagem.
Com o tempo, o telégrafo passou a fazer parte também da comunicação cotidiana das pessoas que buscavam a estação de trem para transmitirem ou receberem telegramas de pessoas de outras cidades.
“Quando eu era menina eu adorava ir à estação passar telegrama. Porque o negócio era assim, um aparelho que você não entende nada, só quem passava as mensagens que entendia e era num instantinho. […] Quando pai adoecia a gente ia correndo na estação passar telegrama, aí vinha um médico às pressas lá de Pedro Leopoldo, de trole, que era um vagãozinho pequeno e amarelo. Nessa época o telegrafista da estação era o Rainero, e tinha o Francisco Massara também. Eles moravam ali na beirada da linha.”Maria da Conceição Cruz Reis (Naná), filha de ferroviário e moradora de Santa Luzia.
O guichê de comprar passagem era aqui do lado de fora, era uma janela de compra de passagem. E no fundo tinha dois cômodos, do lado direito era o do chefe da Estação e o do lado esquerdo era onde ficavam os agentes de Estação. Aí tinha o telégrafo, que era uma mesa enorme cheia de fio, uma mesa linda, não sei onde foi parar. O filtro de água ficava na sala do chefe da estação.Maria Regina Massara, filha de ferroviário.