Desbravando o sertão
Laerte José Balbino, em um dia comum de trabalho, fazia os reparos na linha férrea perto de Sabará, na companhia dos colegas. Eles haviam acabado de receber um carregamento de lastro, material usado para reforçar os trilhos, quando o maquinista desceu da locomotiva com um pedido inesperado: precisava de alguém corajoso que o acompanhasse até Santa Bárbara para buscar mais trabalhadores.
O pedido causou um burburinho, ninguém parecia disposto a se voluntariar; todos hesitavam. O maquinista perguntava um por um, sem que alguém se prontificasse a fazer a viagem. Laerte, ouvido atento, um pouco mais à frente, desejou ser o escolhido. Quando finalmente o maquinista chegou até ele: “Eu vou agora!”, respondeu Laerte com entusiasmo. Satisfeito, o maquinista prometeu-lhe passar em sua casa antes de partirem.
Sem perder tempo, Laerte correu para pegar um colchão e logo estava de volta. Sem pensar duas vezes, embarcou na velha locomotiva e à medida que ela soltava suas primeiras nuvens de fumaça, os trilhos rangiam e o apito ecoava, ele sentiu um frio na barriga, estava indo em direção ao desconhecido.
História inspirada no relato de Laerte José Balbino, ferroviário aposentado da cidade de Pedro Leopoldo.
A Grande Vitória
José Aparecido Correa, conhecido como Zezinho, nunca esqueceu o dia em que ele e seus amigos ferroviários foram convidados a enfrentar um desafio inesperado: um jogo de futebol contra o time de engenheiros da Rede. Os engenheiros, excessivamente confiantes, fizeram uma aposta ousada: se perdessem, pagariam um churrasco completo, com 8 caixas de cerveja e 30 quilos de carne. Para garantir a vitória, eles trouxeram jogadores profissionais do Democratas de Sete Lagoas.
Zezinho conhecia bem seus companheiros de time: o goleiro de Sete Lagoas, o incansável Cacau, Pedro Badu, Edmilson e o sempre lembrado Moreira. No campo, a torcida vibrava a cada jogada. Apesar da vantagem técnica dos adversários, o time dos ferroviários jogou com garra, e o placar final foi um surpreendente 3×0 a seu favor. A vitória foi então comemorada com um churrasco inesquecível, custeado pelos engenheiros derrotados.
História inspirada no relato de José Aparecido Correa, ferroviário aposentado da cidade de Pedro Leopoldo.
O Último Dia de Operação
Pedro Rezende guarda na memória o último dia de operações da Rede Ferroviária antes da privatização. Ele percorreu diversos trechos, registrando tudo em vídeo. A cada parada, os rostos das pessoas refletiam apreensão, pois o fim da Rede Ferroviária deixava todos inseguros quanto ao futuro. O silêncio tenso dominava o ambiente, e muitos trabalhadores se perguntavam se o dia seguinte traria demissões, fato que afetaria diversas famílias.
Na última operação, Pedro estava em Nova Granja. Graças à proximidade que havia criado com os trabalhadores das estações, ele estava na máquina que realizou a última manobra do trem naquela estação. Os manobreiros, com seus uniformes laranja, estavam visivelmente emocionados. Pedro se recorda de ver alguns trabalhadores discretamente enxugando lágrimas. O clima era de despedida, e aqueles que haviam passado anos ali não sabiam o que o amanhã reservava.
História inspirada no relato de Pedro Rezende, pesquisador da história da ferrovia.
Do footing para o altar
Em Pedro Leopoldo, o footing era um evento comum, onde as pessoas se reuniam na estação para ver o trem de passageiros chegar. Era a oportunidade perfeita para trocar olhares e flertes. Foi nesse cenário que o pai de Waldemar Ogando Filho conheceu sua mãe.
Seu pai, Waldemar Ogando, era ferroviário em Corinto e estava a trabalho, de passagem por Pedro Leopoldo. Entre os rostos, na multidão que se formava para ver o trem chegar, uma jovem chamou sua atenção. Após o trem partir, ele não a conseguia esquecer.
Retornou à cidade algum tempo depois e, contra todas as probabilidades, encontrou-a novamente. O namoro surgiu do encontro às margens da ferrovia e transformou-se em casamento. Viveram juntos por muitos anos em uma casa próxima à linha do trem, onde Waldemar nasceu e passou 26 anos de sua vida, ouvindo o som dos trens que marcaram o começo da história de sua família.
História inspirada no relato de Waldemar Ogando Filho, filho de ferroviário e morador de Pedro Leopoldo.
Amor Sobre Trilhos
Ester sempre foi fascinada por trens. Quando adolescente, em São Paulo, sua cidade natal, via os cargueiros passando, sonhava em embarcar neles. Anos depois, durante a pandemia, para se distrair, entrou em um grupo online chamado “Ferrovia Minha Paixão” e, ali, conheceu Waldemar. O primeiro passo foi um simples pedido de amizade feito por Ester.
As conversas começaram e logo perceberam que tinham muito mais em comum do que apenas a paixão por ferrovias. Com o tempo, a amizade transformou-se em um romance, até que, em dezembro de 2020, Waldemar a surpreendeu com um pedido de casamento, mesmo sem nunca terem se encontrado pessoalmente. Ester aceitou.
O primeiro encontro aconteceu em fevereiro de 2021, quando ele enviou passagens para que ela viesse visitá-lo em Pedro Leopoldo, Minas Gerais. A visita confirmou o que sentiam, e Ester logo decidiu se mudar para a cidade. Em abril, se casaram, unindo suas vidas e sua paixão pelos trilhos. Desde então, passaram a explorar juntos, cidades e estações, conhecendo maquinistas e ferroviários, transformando essa paixão compartilhada em novas amizades e memórias duradouras.
História inspirada no relato de Ester Ribeiro, moradora de Pedro Leopoldo.
O Trem de Fidalgo
Ygor Gabriel mora desde sempre no distrito de Fidalgo, em Pedro Leopoldo. Sua família tem uma tradição muito forte com o Congado, transmitida de uma geração para outra. Quando criança, ele se encantava com a música, como ela trazia energia e ritmo para as festas?! Uma das marchas cantadas durante as festas sempre chamou sua atenção: “Estava na estação, auê, Quando o trem passou, auê, Cheio de baiana, auê, De São Salvador.”
Ygor, que também é um apaixonado pela história da ferrovia, descobriu anos depois que a música que tanto gostava quando criança fazia referência ao trem que, anos atrás, passava pela região trazendo mercadorias e passageiros do norte do país e, por isso, era popularmente conhecido como “baianeiro”. Trem que passava pela estação cheio de gente carregando em suas malas histórias, sabores e saberes que deixaram suas marcas por onde passavam.
História inspirada no relato de Ygor Gabriel, morador de Pedro Leopoldo.
Os Sabores que chegam com a Ferrovia
Cátia Maria cresceu ao lado dessa estação, por muitos anos foi testemunha das histórias que se passaram por aqui. Seu pai, motorista da rede ferroviária, tinha uma função importante: levava o engenheiro chefe para onde fosse necessário, as viagens eram feitas no auto de linha que percorria os trechos com agilidade. Embora o trabalho fosse exigente e as viagens muitas vezes longas, ele sempre voltava trazendo algo especial. Para Cátia, o cheiro e o sabor dos frutos frescos que ele trazia tornaram-se quase uma marca de sua infância. Araticum, manga, abacate, goiaba, são sabores que ainda hoje ela consegue sentir o cheiro.
Quando chegava de suas viagens o ritual era sempre o mesmo: o pai parava, descia o saco com as frutas em frente à casa da família e então, colocava os filhos no trole para ir até a garagem que ficava apenas alguns metros à frente. “A gente voltava pela beirada da linha para ir embora pra casa”, lembra ela com saudade.
História inspirada no relato de Cátia Maria, moradora de Pedro Leopoldo e filha de ferroviário.
Quintal de Casa
A infância das irmãs Marta e Márcia Lobato, filhas de Wilson Lobato, engenheiro da rede, foi marcada por muitas brincadeiras e convivência entre as crianças da comunidade. Moravam na casa oficial da Rede Ferroviária, espaço ocupado hoje pela Secretaria Municipal de Educação e por uma unidade de saúde. Mas à época de sua infância, era um grande ponto de encontro para as crianças.
Com um quintal enorme, que incluía um campo de futebol, uma piscina e várias árvores frutíferas, a residência reunia os filhos dos funcionários da estação ferroviária e amigos da vizinhança. O tempo livre era preenchido com jogos, escaladas nas árvores e aventuras pelo bambuzal nos fundos da casa, o quintal vibrava com o som das risadas e os gritos gerados pelas brincadeiras.
Marta, sempre curiosa e espevitada, adorava explorar os espaços da estação e interagir com os funcionários. Acompanhava o trabalho do carpinteiro Rui, do pintor Verinho e de outros profissionais, observando e participando sempre que possível. Essa liberdade de andar pela estação e a convivência próxima com todos marcou profundamente suas lembranças.
Já Márcia guarda com carinho as memórias das brincadeiras no quintal. Os dias começavam cedo, com as irmãs indo para a escola. Mas logo ao retornarem, a casa enchia-se novamente de vida. As crianças escalavam, corriam, inventavam jogos, e o espaço se tornava um mundo onde a imaginação corria solta.
Nessas brincadeiras muitas amizades foram criadas e cultivadas e até hoje elas colhem os frutos desses encontros, esse complexo da estação deixou de ser apenas local de trabalho e passou a ser lugar de convivência e afetos.
História inspirada no relato de Marta e Márcia Lobato, filhas do engenheiro Wilson Lobato.
O coração da cidade
A estação de trem era o coração da cidade, um lugar movimentado e cheio de vida. As pessoas se arrumavam com cuidado para pegar o trem ou mesmo para assistir à movimentação da estação. Mulheres usavam vestidos bem costurados e elegantes, homens também caprichavam na aparência, com ternos bem alinhados e chapéus, reforçando a atmosfera de respeito e charme do local.
Quando o apito soava, a estação lotava. Vendedores se apressavam em oferecer pastéis, broas e outras delícias, enquanto os passageiros corriam para garantir seus lugares. Às vezes, uma figura importante visitava a cidade, e toda a comunidade se reunia para assistir a chegada.
Dentro do trem, a experiência variava conforme a lotação. Havia quem garantisse um assento confortável, mas nos dias de maior movimento, era comum ficar espremido entre os outros passageiros, com pessoas segurando umas às outras para manter o equilíbrio. Ainda assim, o ambiente era acolhedor, com vendedores circulando pelo corredor, oferecendo petiscos e com histórias sendo trocadas.
Embalado pelo apito que ressoava na estação lotada, a passagem do trem se transformou em um evento social!
História inspirada no relato de Elaine Jorge Rafael, moradora de Pedro Leopoldo.
Leite derramado
Desde que se recorda, a vida de Marlise é marcada pelo som constante do trem. Seu pai, maquinista dedicado, passava a maior parte da semana longe, viajando entre as estações de Belo Horizonte, Matozinhos e Esmeraldas, trazendo de volta para a casa frutas e queijos que comprava ao longo da linha.
Era o som do apito distante que marcava o retorno do pai para casa. Ele, sempre impecável, vestia seu uniforme de maquinista – calças azuis, camisa branca e capa azul com o símbolo da Rede, que conferiam a ele a imagem de uma figura respeitada e admirada.
A rotina em casa era corrida, com três crianças pequenas e muitos afazeres domésticos. Em um dia desses que o ar parecia até agitado de tanta coisa a se fazer algo inesperado aconteceu. O vai-e-vem apressado da casa, fez com que o pai derramasse um copo de leite quente sobre seu uniforme minutos antes de sair para seu posto de trabalho. O leite se espalhou por todo o azul-marinho do uniforme, manchando a camisa branca e a capa com o símbolo dourado.
Marlise nunca esqueceu a expressão do pai, com o bigode coberto de leite, bufando de frustração. E sem perder a paciência com as crianças ele se arrumou o mais rápido que pode e correu para atender o chamado da ferrovia.
História inspirada no relato de Marlise Aparecida, filha de ferroviário e moradora de Pedro Leopoldo.