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Um trem de doido
Em 7 de dezembro de 1905, com a chegada da ferrovia, Formiga ganhou o título de "Princesa do Oeste", simbolizando progresso. A inauguração teve autoridades, música, baile na Câmara Municipal e possivelmente uma apresentação de orquestra.

A chegada do trem

“Depois de longos anos de uma vida modorrenta, Formiga, com a inauguração da Estrada de Ferro Oeste de Minas, e a seguir tornando-se ponto inicial da Estrada de Ferro Goyaz, começou a deixar seus traços primitivos de aldeia, ensaiando os primeiros e definitivos passos na senda do progresso.”

Trecho retirado do Álbum de Formiga de 1929.

“A maria-fumaça veio como um dragão soltando fumaça e fazendo um grande barulho. Para uma cidade tranquila e em uma época que não existia tecnologias como o microfone, o som que a locomotiva fazia era ensurdecedor – era um trem de doido!”

Relato de Antônio Maia, neto de ferroviário.

A Princesa do Oeste

Com a chegada da ferrovia no dia 7 de dezembro de 1905, Formiga passa a ser conhecida como a “Princesa do Oeste”. O apelido atrelava a cidade à era moderna e ao ideal de progresso. A inauguração aconteceu na administração do engenheiro Jorge Benedicto Ottoni e contou com a presença de Francisco Antônio de Salles, na época Presidente do Estado de Minas Geraes, e Lauro Severiano Muller, o então Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas e respectivas comitivas. No dia da inauguração houve uma apresentação de música realizada pela banda dos oficiais da Oeste e um baile na Câmara Municipal muito glamuroso. Além disso, há indícios de que houve uma apresentação musical de uma orquestra no dia da inauguração.

O trem chegou mudando tudo

A Estação de Formiga se tornou ponto estratégico da malha ferroviária em Minas Gerais, trazendo múltiplas vantagens para o desenvolvimento do município e para a ferrovia. Se por um lado, para a EFOM, chegar até Formiga significava um desvio de todo o movimento comercial entre Goiás e Minas, por outro, a chegada do trem à cidade significou um aumento do contingente populacional, novas oportunidades de comércio, maior desenvolvimento econômico e urbano, com maior facilidade de escoamento dos produtos produzidos no município e grande movimentação cultural. Além do transporte ferroviário, havia em Formiga diversas estradas de rodagem que ligavam o município a seus distritos. O transporte fluvial pelo Rio Grande também era explorado para o transporte de mercadorias e passageiros, principalmente pela Companhia de Estrada de Ferro do Oeste de Minas.

A necessária integração com o Oeste

A Estrada de Ferro Oeste de Minas, tinha como objetivo ligar o Rio de Janeiro, ao oeste mineiro e a Goiás. Contudo, por desafios de infraestrutura e finanças, a Companhia, que partia de Sítio com sede em São João del-Rei (MG), teve seu ponto final construído em Formiga. Sua extensão até Goiás era dada como certa por todos; inclusive foram feitos trabalhos de preparação para 30 km de leito até Arcos, onde a estrada seguiria rumo a Sacramento. Contudo, esse prolongamento da linha da EFOM não foi possível. Assim, em 1907, a companhia Estrada de Ferro Goiás (EFG) decide assumir o prolongamento da linha, deslocando seu ponto inicial de Araguari para Formiga. Estava em pauta, à época, a necessidade de integração da nação pelos meios ferroviário e fluvial. Assim, a EFG não só assumiu o trecho como indenizou a EFOM pelos estudos no trecho entre Formiga e Arcos; oferecendo duas locomotivas tipo Consolidation, da Baldwin Locomotive Works, 15 vagões e 1 100 toneladas de trilhos de aço.

“Essa estrada de Ferro Goiaz tinha aqui uma grande officina, constituindo-se como estrada de penetração rumo a Goiaz, o principal veículo de progresso da cidade não só pelo grande número de empregos mais diversificados que proporcionava, como também porque os seus trilhos, avançando lentamente, faziam convergir para Formiga todo o comércio da zona […] O transporte de mais luxo e conforto era o ferroviário, e as mercadorias transportadas pela ‘Oeste’ eram aqui baldeadas e transferidas para a ‘Goiaz’ […].

Trecho publicado por Vinícius Eufrásio de Oliveira na tese Música na Princesa d’Oeste Mineiro: uma cartografia das práticas, formações e espaços educativos em Formiga, 2022.

Urbanização da Princesa do Oeste

Na primeira década do século 20, Formiga vivencia o avanço da urbanização de forma bastante acelerada. Junto com a chegada da ferrovia, veio também a luz elétrica, o abastecimento de água potável, o calçamento de ruas, a construção de pontes, a fundação de escolas, dentre outros aparatos urbanos. Um dos principais responsáveis por essas mudanças foi o coronel prefeito José Bernardes de Faria, que ficou à frente do governo municipal de Formiga entre 1898 e 1919.

“Oeste e Goiaz constituíam-se em ‘linhas troncos’ de uma região sobre a qual tínhamos amplo domínio econômico, social e educacional. A não ser a distante Uberaba e São João del-Rei, como ponto de pernoite forçado, Formiga era a cidade mais culta e mais próspera; era a ‘Meca’ que atraía viajantes. […] Nunca Formiga avançou tanto rumo ao progresso como na primeira década deste século, em que se estruturavam os alicerces dos dias atuais. E nunca o povo de Formiga foi tão previdente quanto ao futuro, e nem tão devoto à construção dos dias vindouros.”

Trecho publicado por Vinícius Eufrásio de Oliveira na tese Música na Princesa d’Oeste Mineiro: uma cartografia das práticas, formações e espaços educativos em Formiga, 2022, retirado do Álbum da Cidade de Formiga.

O tão sonhado “progresso”

Formiga teve um crescimento exponencial após a chegada da ferrovia ao município. Esse local pacato e predominantemente rural, com a chegada do trem, se tornou lugar de grande movimento e desenvolvimento urbano. O tão sonhado progresso havia chegado! Viajantes e comerciantes indo e vindo, novas formas de trabalho e uma imensidão de atividades culturais e de lazer permeavam a vida na Princesa do Oeste. Em 1929, Formiga já tinha cerca de 50 000 habitantes, dos quais 12 000 habitavam a região urbana. Apresentava ainda mais de 40 ruas, 11 praças, 20 becos e travessas, 1 418 construções urbanas. Formiga contava também com um fórum, uma cadeia, uma casa de caridade (fundada em 1893), o Cineteatro (antigo Teatro Formiguense), dois telégrafos nacionais, centros de ensino público e particular; e diversas estruturas de lazer e cultura.

As outras estações

A partir de 1920, a EFOM passou a percorrer todos os distritos de Formiga, com exceção de Pains. O município continha as seguintes estações: Formiga, Loanda, Arcos, S. Miguel, Garças, Porto Real, Indústrias, Panelleiros, Timboré e Bugios. Essas estaçõezinhas, como eram conhecidas, tinham uma arquitetura muito semelhante entre si e eram bem menores do que a Estação Central, pois serviam para o embarque e desembarque de um número bem reduzido de passageiros e/ou de mercadorias. Dentre essas pequenas estações, a Estação Ferroviária de Timboré e a Estação da Charqueada (Estação Omar Soares) também fazem parte da memória de muitos formiguenses.

O que ia e vinha pelos trilhos

Na agropecuária, Formiga se destacava, principalmente pela produção de café, cerais, carne bovina – em especial o charque e a carne suína, com destaque para a produção de linguiça. Uma das estações da cidade foi apelidada carinhosamente de “Estação da Charqueada”, sendo essa a principal estação por onde a carne era enviada para outros estados e municípios.

“A exportação de gado bovino calcula-se em mais de 60 000 cabeças, exceptuando-se as abatidas na xarqueada local, em média 2 000 mensalmente. A exportação de suínos sobe de 50 000 cabeças, sendo principais exportadores os distritos de Arcos, Pahins e Porto Real, cujos rebanhos são adquiridos nos curraes pelos compradores que fazem ‘ponto’ na Estação das Garças.”

Trecho retirado do Livro Álbum de Formiga de 1929.

Comércio agitado

alfaiatarias, ourives, armazéns, açougues, lojas de móveis, relojoarias etc. Havia também algumas fábricas no município; dentre estas, os ramos que mais se destacaram foram fábricas de banha, bebidas, aguardente de cana, esporas e outros artigos de ferragem, obras de ourives, curtumes de pele, calçados, móveis etc. Outras atividades econômicas diretamente ligadas ao entorno da ferrovia e ao movimento de viajantes no município eram os serviços de carroceiro, hotéis e pensões, o trabalho das lavadeiras, e os bordéis.

“Rota comercial importante, Formiga ocasionava um volumoso trânsito de pessoas, e, como consequência disso, podemos observar em várias fontes a intensa atividade e produção musical durante o século XX no que diz respeito à vida religiosa e a espaços de entretenimento e convívio social, como teatro, cinema, clubes, salões, ruas e praças, e também por meio de instituições de ensino.”

Vinícius Eufrásio e Edite Rocha no artigo “Memórias imagéticas de atividades musicais na cidade de Formiga/MG no século XX”, na revista Estudos de iconografia musical na transversalidade, publicado em 2021.

Depoimentos

CHARQUEADA

“O avô da minha esposa tinha uma indústria aqui de linguiça muito famosa e que naquela época ele exportava pro Rio de Janeiro. Era linguiça defumada. Chamava linguiça tipo padre. É uma linguiça para feijoada portuguesa. Então, ele enviava essa mercadoria que ia pro Rio de Janeiro em vimes; era bambu com folha de bananeira em cima, e ia nos vagões, era mandada por trem. Meu avô era quem organizava isso. Aqui nós tínhamos a Charqueada, que é um ponto interessante também. Chamava Estação da Charqueada. É uma outra estação, é na saída, indo pra Campo Belo. Lá tinha um dos maiores frigoríficos de abate de vaca pra produzir o charque. Então, por isso, chama lá a estação da Charqueada. Dali saía pro Brasil todo pela linha de trem.”

Relato de Márcio José Maia Figueiredo, neto de ferroviário.

LINGUIÇA

“Nosso sogro trabalhava na ferrovia, mas também fabricava linguiça. Ficava perto da estação e chamava Linguiça Teixeira, só que a cidade inteira a conhecia como linguiça Chico Neto, porque naquela época fazer qualquer coisa em casa não era muito usual. E meu sogro, não sei por que cargas d’água, inventou de fazer linguiça! Aí na verdade ele não fazia – quem fazia era a mulher, minha sogra. E essa linguiça ficou famosa na região, porque a linguiça é uma carne fácil de se comprar, que é só comprar e fritar. Ele fazia antigamente com tripa de carneiro. A de carneiro quem começou com ela aqui foi o seu Chiquinho, e era famosa: pessoal do Rio, de São Paulo, de Belo Horizonte, tudo, vinha comprar e provavelmente essa linguiça era transportada pelo trem.”

Relato de Vera Lúcia e Maria Cajubi, parente de ferroviários.

LOJA AMÉRICA

“A loja começou na casa José Azarias Vieira, J.A.V., em 1908, na Rua Belo Horizonte, atual Rua Abílio Machado. Com o passar do tempo e com os filhos ajudando na administração, passou se chamar Loja Nova América. Quando começou, vendiam materiais diversos de carpintaria, material que ele próprio fazia pra vender: canetas de penas de ferro, as tintas para as canetas. Depois foi variando, e nas últimas etapas ele vendia até material musical. Tinha uma parte da loja com roupas prontas e tecidos pra fazer roupa, na época que a roupa não era comprada pronta. A gente tem amostras de um tecido que foi bem famoso, o tecido riscado ou o tecido Aurora. Ele era usado pra fazer o material de casa, lençol, colchão, forro de mesa e roupas.”

Relato de Gervânio Araújo, funcionário do Museu Municipal Francisco Fonseca.

CARROCEIRO

“A praça da estação ferroviária era ponto de carroceiros. Eles ficavam aguardando os trens chegarem para fazerem o transporte de cargas e de pessoas até seu destino final. Era como se fosse um ponto de táxi numa rodoviária atual, só que o frete era feito com tração animal e não de carro.”

Relato de Luiza Rabelo Parreira, historiadora e moradora da cidade.

POUSO

“Antes de construir o Clube Centenário, ao lado tinha o restaurante e tinha pensão. Quem chegava aqui tinha um lugar para ficar, e na parte de baixo tinha os hotéis, tinha o hotel Vila Rica ali no fundo, tinha uns hotéis na parte de baixo.”

Relato de Elton da Costa Pinto, funcionário do Museu Municipal Francisco Fonseca.

LAVADEIRAS

“Aqui tinha muita lavadeira de roupa; pegava roupa das pessoas mais abastada, né? Então como não tinha lavadora de roupa, ia lavar lá no rio, porque na época o rio não tinha não tinha esgoto, não tinha nada, e o rio era fundo e limpo. Então, a diversão dos filhos e dos parentes das lavadeiras era nadar no rio. Cada uma tinha uma clientela, e provavelmente lavavam as roupas dos ferroviários.”

Relato de Antônio de Oliveira Diniz, ferroviário aposentado.

CORTESÃS

“A zona era no centro, era o ponto de encontro dos viajantes. Ficava nas ruas, Quintino Bocaiúva e Santo Antônio. É interessante que isso faz parte da história da cidade, e a ferrovia trazia um tanto de gente aqui. Essa fama da cidade corria na boca do povo, eles falavam: ‘Pernoita lá em Formiga que o negócio é bom!

Relato de Márcio José Maia Figueiredo, neto de ferroviário.

PERNOITE

“O mais interessante é que nós, mulheres, não podíamos passar nessa rua; tinha que passar acompanhada de alguém ou dar a volta para não sermos confundidas.”

Relato de Rosângela Maria Pieroni Figueiredo, parente de ferroviário.

AGULHA

“Meu bisavô veio da Itália, e na fazenda deles tinha a Estação de Franklin Sampaio. Tinha uma capela onde aconteciam os casamentos. A minha memória de lá eram festas de casamento, e tinha uma venda que vendia de tudo. Então o pessoal ia lá, comprava de uma agulha até um cavalo arriado.”

Relato de Eduardo Teles Paulinelli, morador da cidade.

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