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Um pouso, uma capela: uma cidade
O povoado de Formiga surgiu como pouso de tropeiros e carreiros que transportavam alimentos e escoavam a produção agropecuária para o Rio de Janeiro. O Rio Formiga era uma das paragens mais usadas, e o Arraial São Vicente Férrer nasceu de um pouso e de uma capela, segundo registros históricos.

As picadas de Goiás

No ano de 1737, o governador de Minas Gerais, Gomes Freire de Andrade, autorizou por meio de despacho a criação da Picada de Goiás. Influenciados pelo achamento do ouro no Rio Vermelho, nascente do Araguaia em Goiás, muitos caminhos foram construídos para chegar ao local recém-descoberto. A Picada vinha de São João del-Rei em direção ao Rio São Francisco. Os bandeirantes, no século 18, saíam pelo Sertão a procura de ouro e escravizavam ou dizimavam as populações que já habitavam esses territórios, como quilombolas e indígenas. Conforme citado no livro Toda História tem endereço: Formiga, publicado em 2021, Gomes Freire se queixava em 1745, em carta direcionada a Dom Luiz Mascarenhas (mandatário de São Paulo): “Eu também tenho infestado o caminho de São João a Goiás um quilombo segundo dizem de mais de seiscentos negros armados”.

A luta dos quilombos do Campo Grande

Em 1746, o Quilombo do Ambrósio foi atacado pelo capitão Antônio João de Oliveira. O palanque central desse evento ficou conhecido como “Morro das Balas”, sítio histórico tombado pelo decreto municipal de Formiga em 2012. Ambrósio foi o maior líder quilombola dessa confederação – que levava seu nome. Ele sobreviveu e transferiu sua capital para a região entre as atuais cidades de Campos Altos e Ibiá. Ali, os quilombos seguiram em resistência e foram se multiplicando.

Entre 1759 e 1760, ocorreu a segunda grande guerra do Campo Grande. As tropas de Gomes Freire, lideradas por Bartolomeu Bueno do Prado, com 400 homens, destruíram o Quilombo do Ambrósio, e o Rei Ambrósio foi capturado e morto. Na história oficial de Formiga não há menção aos territórios indígenas ou quilombolas, e isso tampouco ocupa o imaginário popular. Vale ressaltar que a história da cidade é muito anterior à atividade dos tropeiros na região.

Chama-se “Morro das Balas” devido à presença no solo do mineral martita, um agregado de ferro, pirita e marcassita, de formato esférico, que lembra “balas de armas antigas”. Está localizado nas coordenadas 20º 24’ 9.34” S; 45º 26’ 27,07”O, a 675 metros de altitude, de onde é possível ter uma visão ampla de seu entorno, o que facilitou a construção de trincheiras para defesa contra os invasores.

Segundo Tarcísio José Martins, o sistema de captação tributária de Minas Gerais no século 18 era completamente incompatível com o sistema escravista, porque, diferentemente do trabalho nos engenhos, os trabalhos nas minas em busca de ouro e diamante eram mais penosos. Os escravizados eram incentivados a encontrar pedras preciosas em troca da possibilidade de serem libertados. Além disso, existiam meios de contrabandear metais (“santo do pau oco”) para, assim, conseguir juntar o suficiente e comprar a própria liberdade. “Ou seja, a possibilidade do negro se tornar livre nas Minas Gerais era infinitamente maior do que no engenho. O hábito de se libertar o negro que achasse um grande veio de ouro ou um grande diamante foi costume que, efetivamente, se consagrou de fato e de direito (MARTINS, 2008, p. 266). Inclusive, esse sistema saiu do controle: “a população ‘livre’, na verdade, chegou a ser composta de mais de 60% de negros (pretos e pardos) livres e forros” (MARTINS, 2008, p. 266).

“O sistema tributário da captação, incompatível com o sistema econômico escravista, bem como a figura despótica de Gomes Freire, sua sede de poder e o expansionismo que perpetrou, abocanhando fronteiras a norte, a sul e a oeste das Minas Gerais, sem dúvida, foram as causas diretas do resultado da Confederação Quilombola do Campo Grande” (MARTINS, 2008, p. 462).

Devido ao sistema tributário de captação, pretos forros e livres, brancos pobres e seus escravizados acabavam por sonegar esses impostos. Assim, as Minas estavam se esvaziando: “na verdade, a população das vilas diminuía pela fuga do povo para os sertões onde, declarado sonegador, não tinha mais como voltar à legalidade” (MARTINS, 2008, p. 464). Assim, no Quilombo do Ambrósio, não havia apenas escravizados fugidos, mas também brancos pobres, pretos forros e livres.

Terras cedidas aos forasteiros

A partir de 1764, o governador da capitania, Luís Diogo Lobo da Silva (1763-1768), empreendeu várias expedições ao Sertão do Oeste, a fim de tornar a região “habitável e produtiva”. Isso significou uma nova guerra étnica contra indígenas e quilombolas. Ignácio Correia de Pamplona foi o principal responsável por liderar essas expedições. Nesse período foram concedidas mais de 20 sesmarias na região. Contudo, mesmo com essa vinda de sesmeiros e fazendeiros, que detinham o poder das propriedades entre o final do século 18 e início de século 19, o arraial era formado, em sua maioria, de brancos pobres e pretos forros e livres. Com o avanço da colonização, surgiram os primeiros focos urbanos, mas sua população não se distinguia tanto daqueles primeiros habitantes do Quilombo do Campo Grande. Segundo Tarcísio José Martins (2008), a existência de vilarejos com a população quase exclusivamente formada por pretos livres no Centro-Oeste e Sudoeste de Minas era muito comum.

“Um ano após a expedição, Bartolomeu Bueno do Prado requereu sua sesmaria na região denominada Campo Grande em 18 de dezembro de 1760. Também se integram às investidas, as ações de Ignácio Corrêa Pamplona, em 1765 e 1769, que nas suas conquistas como regente da região, a fim de “tirar o terror aí existente”, combateu com suas tropas os quilombos restantes no Bambuí e Campo Grande(…).”

Pedro Coelho no artigo “Formação do Arraial de São Vicente Férrer da Formiga: o povoamento do oeste de Minas Gerais (séc. XVIII – XIX)”, publicado em 2016.

Pouso de tropeiros

A região passou a servir de pouso de tropeiros e carreiros que transportavam e vendiam alimentos para o abastecimento das tropas. Posteriormente, esse caminho também se tornou um meio importante de escoar a produção agropecuária da região para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Nesse caminho, muitos proprietários de terras (sesmeiros) cediam suas terras para o pouso de tropeiros e carreiros que trabalhavam no transporte e no escoamento dessa produção. Em uma dessas paradas acredita-se que nasceu o povoado de Formiga. O Rio Formiga era frequentemente mencionado como uma das paragens mais utilizadas da região.

Formiga enquanto povoado classificava-se entre aqueles formados por um pouso de tropeiros e carreiros, isto é, um terreno em que o proprietário concedia para os tropeiros acamparem e descansarem. Sobre a criação do Arraial São Vicente Férrer da Formiga, José Francisco de Paula Sobrinho (cartas de concessão das sesmarias), propõe que a cidade nasceu de um pouso e de uma capela.

Pedro Coelho no artigo “Formação do Arraial de São Vicente Férrer da Formiga: o povoamento do oeste de Minas Gerais (séc. XVIII – XIX)”, publicado em 2016.

Por que Formiga tem esse nome?

Versão dos tropeiros

Por causa dos tropeiros e carreiros que passavam pela região, surgiu a lenda da origem do nome da cidade, uma das raras localizações mineiras que manteve o seu nome de origem. Confira a lenda:

“Durante uma viagem, alguns tropeiros viajantes levavam um carregamento de açúcar para abastecer localidades no interior. Eles pararam em uma noite para descansar, acenderam o fogo para conversar e contar histórias ao redor da fogueira. Então, chegada a hora, foram dormir, “não se apercebendo que nas caladas da noite um bando voraz de formigas, destruía a carga, causando consideráveis prejuízos. Com o despontar do novo dia, prosseguiram a viagem, e é provável que aqui tenham voltado, o que porém, se tem como certo, é que o nome Rio das Formigas ficou conhecido, e outros tropeiros vindos do Sul, procuraram sempre as suas margens, por saber encontrarem pouso seguro e certo”.

Trecho retirado do Livro Álbum de Formiga de 1929.

Versão dos portugueses

Uma segunda possibilidade da origem do nome é que os portugueses de origem açoriana, que foram para a região no século 18 e se tornaram os primeiros sesmeiros do entorno, achavam a paisagem da localidade semelhante àquela dos ilhéus que eram chamados de Formigas.

Versão dos indígenas e quilombolas

Uma terceira possibilidade, de acordo com os pesquisadores Gustavo Nolasco e João Gabriel, está no livro Toda História tem endereço: Formiga, publicado em 2021:

“Uma petição da Câmara de Sabará [foi feita] para que fossem enviados de São Paulo 200 casais de [indígenas] Tapuias de Minas Gerais, com o objetivo de darem fim aos quilombos espalhados pelo território. Esses agrupamentos carregavam o codinome de “formigas” – em virtude do hábito desses indígenas de se alimentarem de tanajuras ou içás – e um desses grupos teria se instalado no atual território formiguense.”

Um pouso e uma capela

Independentemente da origem do nome da cidade de Formiga, o vilarejo se originou como ponto de parada de tropeiros e carreiros na Picada de Goiás e apóscom a construção das capelas de São Vicente de Férrer, em 1798, e de Nossa Senhora do Rosário, em 1814. Aos poucos, algumas pessoas se acomodaram, e o lugar que era apenas uma paragem se tornou o Arraial São Vicente Férrer da Formiga a partir de 1780; depois se tornou a Vila Nova da Formiga em 1839; finalmente, em 6 de junho de 1858, Formiga foi elevada à categoria de cidade.

Formiga e a região que a circunda, não surgiu de uma ideia ou projeto, mas fez parte de um contexto geral, onde se fixaram, aos poucos, pessoas das mais variadas formações e origens (…) Com a Picada de Goiás em constante atividade, as sesmarias ganhas com a necessidade de produzir lavouras ou criar gado (exigência contratual), exigem a presença dos donos e assim se deslocaram para suas propriedades, formando as povoações (…).

Gustavo Nolasco e João Gabriel “Toda História tem endereço: Formiga”, publicado em 2021.

Com o passar do tempo, o pouso onde repousavam os viajantes se transformou em rancho – oferecendo uma estrutura coberta e pasto para os animais – e, consequentemente, tornava-se uma venda, passando a oferecer produtos diversos a estes viajantes como, por exemplo, alho, cachaça, velas, doces, carne seca, fumo, ferraduras, chapéus etc. Em uma outra fase, esse embrionário núcleo populacional passou a também contar com uma estalagem ou uma hospedaria para receber os viajantes.

Trecho de José Francisco de Paula Sobrinho (2007), publicado por Vinícius Eufrásio de Oliveira, na tese de doutorado “Música na Princesa d’Oeste Mineiro: uma cartografia das práticas, formações e espaços educativos em Formiga”, em 2022.

Arraial São Vicente Férrer da Formiga

Passaram por Formiga no início do século 19, viajantes europeus que registravam, a partir de suas perspectivas, o que viam pelo território. Entre eles, o francês Auguste De Saint-Hilaire, que visitou o arraial em meados de 1819 e o austríaco Johann Emanuel Pohl que passou pela região em meados de 1818, por meio desses relatos é possível identificar não somente as características físicas da população local naquele período histórico, mas também, seus costumes, crenças, atividades econômicas, etc. Porém, ao olhar esses relatos, é importante que isso seja feito com cuidado, pois se trata do olhar de viajantes europeus, que, a partir de um ponto de vista colonizador e racista, sempre comparavam os costumes alheios aos seus. De toda maneira, esses relatos ajudam a recolher informações da sociedade da época e também dessa relação colonialista dos europeus em terras brasileiras.

Na entrada do Sertão

Auguste de Saint-Hilaire descreve a povoação em 1819: O Arraial da Formiga fica situado à beira de um pequeno curso de água que tem seu nome, num amplo vale rodeado de colinas cobertas de matas e pastagens. As ruas do arraial são mal alinhadas, as casas afastadas uma das outras, quase todas pequenas e mal-cuidadas. A igreja é construída no fundo de uma praça bastante larga, num ponto mais elevado do que o resto do arraial. (…) Apesar da indigência que o aspecto de Formiga sugere, parece que há gente bastante abastada em seus arredores e no próprio arraial. Situada à entrada do sertão, Formiga faz um bom comércio com essa região. Seus comerciantes mantêm contato direto com o Rio de Janeiro e vendem no interior o sal, o ferro e outras mercadorias que mandam buscar na capital, recebendo em troca couros, peles de veado, algodão e gado. Os próprios arredores de Formiga fornecem uma boa quantidade de algodão, mas são os porcos que constituem a principal riqueza da região.

Pedro Coelho no artigo “Formação do Arraial de São Vicente Férrer da Formiga: o povoamento do oeste de Minas Gerais (séc. XVIII – XIX)”, publicado em 2016.

Os porcos canastra

Existem ainda lavras em exploração nos terrenos mais próximos do Rancho do Rio das Mortes Pequeno e de São João del Rei. As dos arredores de Tamanduá e Pium-i, porém, estão agora completamente abandonadas. Ali, cultiva-se a terra, cria-se gado e cevam-se porcos. Logo depois de passar pela propriedade do Capitão Pedro, situada a nove léguas do Rio das Mortes, vi em todas as fazendas um grande número de suínos. São eles que constituem a principal riqueza dos arredores de Formiga […]. A raça de porcos mais comum nessa região é chamada canastra. Os porcos são geralmente pretos e me parecem ter as pernas mais compridas que os da França, o corpo mais curto e o dorso mais arredondado. Suas orelhas se mantêm eretas na primeira infância e são um pouco caídas nos adultos […]. Os negociantes de Formiga compram os porcos nas fazendas das vizinhanças, onde são criados em grande quantidade, embora não lhes dêem grande importância. A acreditar no que me disseram, um desses marchantes despachara, ele só, vinte mil porcos em 1818.

Trecho publicado por Leopoldo Costa, no texto “Saint Hilaire viaja pela região de Formiga na segunda década do século XIX”, em 2015.

Homens de cor

A população atual do Sertão é quase toda ela composta de homens de cor. Não havia, por ocasião de minha viagem, senão dois homens brancos na povoação de Contendas, e não vi mais que um único durante os quatro dias que passei na de Coração de Jesus.

Auguste De Saint-Hilaire, no texto “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Quadro geral do sertão, publicado em 1938.

Uma mísera observação

“Depreende-se do que apontou Pohl, no decorrer de sua viagem rumo à Capitania de Goiás, que as grandes propriedades rurais estão nas mãos de brancos abastados e senhores de numerosa escravaria; as vilas, todas elas, são povoados de pretos livres pobres. Oliveira: “200 casebres de barro que formam uma única rua larga […] os moradores do lugar, mulatos e negros, pareceram-me espíritos curiosos, mas limitados.” “Formiga é um mísero arraial entre três morros, à margem do riacho do mesmo nome, com cerca de cem casebres de barro e duas igrejinhas insignificantes. A maioria dos habitantes compõe-se de negros e mulatos que vivem da criação de porcos.”

Tarcísio José Martins no livro “Quilombo do Campo Grande: história de minas que se devolve ao povo”, publicado em 2008.

Feiticeiros e lobisomens

Os agricultores passam a vida nas fazendas e só vão à vila nos dias em que a missa é obrigatória. A obrigação de se reunirem e se comunicarem uns com os outros, bem como o cumprimento das obrigações religiosas, impede-os, talvez mais do que qualquer outra coisa, de reverterem a um estado de quase selvageria. Não obstante, a utilidade dessas idas à paróquia seria bem maior se o agricultor pudesse tirar delas alguma instrução moral e religiosa. Os eclesiásticos, porém, não se dedicam a instruir os fiéis, e comumente escandalizam-nos por sua conduta irregular. Nos países civilizados a ausência de ensinamentos religiosos e morais conduz a um rude materialismo, ao passo que naqueles que ainda não se civilizaram inteiramente essa falta geralmente leva à superstição. Assim é que os habitantes da região que descrevo agora acreditam em feiticeiros e lobisomens, e muitos chegam ao cúmulo de considerar heréticos os que se recusam a acreditar nisso. Eu disse acima o quanto é útil para os agricultores a oportunidade que têm de se reunirem e se comunicarem uns com os outros, mas devo acrescentar que as vantagens dessas reuniões nos lugarejos e povoados ficam infelizmente anuladas pelos perigos que ali os esperam. A população permanente das vilas é com efeito em grande parte composta, em todo a Provincia de Minas, de homens ociosos e de prostitutas, e nos ranchos dos mais humildes lugarejos presencia-se uma vergonhosa libertinagem, e com um impudor, às vezes, de que não há exemplo nas nossas cidades mais corrompidas.

Trecho publicado por Leopoldo Costa, no texto “Saint Hilaire viaja pela região de Formiga na segunda década do século XIX”, em 2015.

Assassinatos no Sertão

Enfim, estou persuadido de que essa região deserta frequentemente serviu de asilo a criminosos perseguidos pela justiça […]. Houve um tempo em que os assassinatos eram, dizem, frequentíssimos, no Sertão; o calor do clima, porém, e principalmente o abatimento que acarreta, abrandaram os costumes, e, de uns vinte anos para cá os homicídios tornaram-se mais raros. Aliás, não é nunca para roubar que se assassina; é para dar largas ao ódio, à vingança e aos ciúmes Auguste de Saint-Hilaire, no texto “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Quadro geral do sertão, publicado em 1938.

Sem toucinho

“A indolência dos habitantes do Sertão é talvez maior ainda que a dos outros mineiros. Sua fisionomia revela-lhes já a índole, e se encontra a expressão desse defeito em todos os movimentos do seu corpo. Aliás, o calor do clima convida bastante os homens dessa gleba a entregarem-se à ociosidade. A criação de gado, a que se entregam, exigindo pouca atividade, favorece sua tendência à moleza, e a má alimentação que quase sempre ingerem, contribui ainda mais para tirar-lhes a energia. Cozinham sem toucinho, que constitui o alimento ordinário dos brasileiros do interior, e nem todos os proprietários são suficientemente ricos para adicionar carne ao feijão. Durante a estação em que as vacas parem suas crias, quer dizer, desde o fim de agosto até o mês de janeiro, grande número de Sertanejos vivem apenas de leite misturado a farinha de mandioca, e, muitas vezes até os habitantes do Sertão não têm outra nutrição a não ser frutos selvagens.”

Auguste de Saint-Hilaire, no texto “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Quadro geral do sertão”, publicado em 1938.

Os habitantes do deserto

“A indigência é a companheira ordinária da preguiça. Por isso, apesar das vantagens que apresenta sua terra, os habitantes do deserto são de uma pobreza extrema […]. Homens lá nascidos, ou de qualquer outra parte do Brasil ou de Portugal, vêm às vezes, fundar, no Sertão, estabelecimentos consideráveis, e tiram proveito dos numerosos recursos que oferece essa região; mas seus filhos são criados na indolência, defeito que é sempre seguido da libertinagem; não têm previdência; dissipam a herança paterna; as mais belas fazendas caem em pouco tempo em ruínas, e raramente veem-se fortunas passar à terceira geração. Não é para admirar que homens vivendo na pobreza e no isolamento sejam ignorantes e supersticiosos. Tem-se, em todo o Sertão, grande fé em sortilégios; essa crença serve para enriquecer tratantes que a polícia deveria punir, se nesse local houvesse polícia. O feiticeiro que, por ocasião da minha viagem, tinha maior fama, era um negro livre que habitava uma povoação dependente do termo de Minas Novas. Apesar do preconceito em geral vigente contra sua cor, vinham consultá-lo de muito longe, e o negro esperto comprava escravos, e ia constituindo para si uma habitação excelente.”

Auguste de Saint-Hilaire, no texto “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Quadro geral do sertão”, publicado em 1938.

Esforços inauditos

Companheira de todos os vícios, a indolência é uma das principais chagas dessa região. Fiz esforços inauditos para encontrar um tocador numa extensão de 60 léguas, e, no entanto, existe ali uma multidão de homens pobres e sem ocupação!

Trecho publicado por Leopoldo Costa, no texto “Saint Hilaire viaja pela região de Formiga na segunda década do século XIX”, em 2015.

Escassez de modelos

Uma reforma nesses moldes seria tanto mais para desejar visto como, se os sertanejos vegetam na ignorância, é às circunstâncias em que se acham que o devem, e não a falta natural de inteligência. É surpreendente que homens que vivem tão afastados das cidades e que pouco se comunicam uns com os outros, tenham conservado tanta polidez e linguagem tão pura. Alguns meses, de instrução bastam muitas vezes para ensinar às crianças a leitura e a escrita, e, apesar da escassez de modelos que os habitantes dessa zona tem sob os olhos, e a ausência total de recursos para aprender o que quer que seja, alguns demonstram uma habilidade e um gosto para as artes mecânicas que mereceriam encorajamento.

Auguste de Saint-Hilaire, no texto “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Quadro geral do sertão, publicado em 1938.

Mandioca e salitre

“Aliás, os habitantes do interior do Sertão não plantam senão para o próprio consumo. Um vegetal que cultivam muito, e que não se vê nos arredores de Vila Rica, é a mandioca […]. O salitre é para essa região uma riqueza muito mais sólida. Essa substância se encontra em grande parte do deserto, e é permitido indistintamente a todos os particulares explorar terras salitradas em qualquer lugar que seja […]. Existe por todos os arredores dessa povoação de Coração de Jesus grande número de grotas de onde se extraem terras salitradas. Os arredores da povoação de Formiga produziram também muito salitre; atualmente, porém, as jazidas dessa zona estão quase esgotadas. Censura-se, aliás, aos que tiram as terras salitradas das grotas em que se encontram, de terem eles próprios posto um fim a esse gênero de produção, não devolvendo jamais às cavernas a terra delas extraída.”

Auguste de Saint-Hilaire, no texto “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Quadro geral do sertão”, publicado em 1938.

Catingas e cavernas

“Aproveitei minha permanência em Formigas para ir ver uma grota de onde se extraía salitre, provavelmente a única da região que, por essa época, ainda fornecia a substância. Depois de atravessar, por espaço de cerca de uma légua, catingas absolutamente semelhantes às da 7ª divisão, cheguei a uma casinhola denominada Lagoinha, cujo dono era o proprietário da caverna. Fizeram-me subir para um desses carros de boi em uso na região, e em breve cheguei a rochedos que estão dispostos por estratos horizontais, e formam uma espécie de muralha perpendicular ao solo. Exatamente por baixo desses rochedos está a entrada da caverna. Antes de os homens terem começado a trabalhar aí, ela já fora escavada pela natureza em uma área de cerca de trinta passos de comprimento por oito ou dez de largura. Por ocasião de minha viagem havia três anos que se tirava terra salitrada dessa caverna, e ela se prologava muito adiante sob rocha, formando várias sinuosidades. Penetrei até o lugar a que tinham chegado os trabalhadores, caminhando quase sempre curvado, e adiantando-me às vezes de gatinhas. Os rochedos servem de cobertura a essa galeria; por toda a parte a terra é muito fortemente salitrada; quanto ao mais não vi nada que me parecesse digno de nota. A postura que se é obrigado a tomar na caverna não permite que se tire a terra nessas grandes bacias denominadas bateias, que estão em uso no país. Empregam-se, por isso, carretas extremamente pequenas, semelhantes a brinquedos de criança, e que são feitos pelo modelo dos grandes carros de boi […].”

Auguste de Saint-Hilaire, no texto “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: quadro geral do sertão”, publicado em 1938.

Riqueza de gado, trabalho forçado

“O que torna muito preciosos os terrenos salitrados do sertão é que eles substituem, para o gado, o sal que se é forçado a dar aos animais nas outras zonas da Província de Minas e na de S. Paulo. A essa vantagem a região acrescenta ainda, como já vimos, a de possuir pastagens imensas; por isso os gados bovinos e cavalar podem ser considerados como sua principal riqueza. Nessa região, como no resto da província, o gado passa todo o ano nos campos; não é recolhido a currais, e colonos existem que, só possuindo dois escravos, têm, no entanto, vários milhares de cabeças de gado. Para reconhecer os animais que lhe pertencem, cada proprietário marca-os com um ferro em brasa.”

Auguste de Saint-Hilaire, no texto “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: quadro geral do sertão”, publicado em 1938.

 

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