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A vida na Estação
A estação tinha três áreas principais: uma central para bilhetes, telégrafo e plataforma, e duas laterais para embarque e desembarque de mercadorias.

Olá, sou o Claudinê dos Santos, guardião da história de Formiga! Alguns me chamam de “Senhor dos Anéis”, outros de “Robin Hood”, mas a maioria lembra de mim mesmo é pela minha voz...

Claudinê

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A Estação e o trabalho

“Segundo Claudinê Silvio dos Santos, que trabalhou na estação como telegrafista entre 1962 e 1964, o prédio em questão estava subdividido em três espaços principais. Tendo em vista o referencial de um observador que entra no prédio pelo portão principal, existia um espaço central, onde encontravam-se o equipamento do telegrafista, o guichê de venda de bilhetes, a entrada para a plataforma de embarque de passageiros e a sala do agente da estação. À direita situava-se uma grande sala onde era realizado o embarque de mercadorias. No lado esquerdo existia uma sala de tamanho semelhante à anterior, onde dava-se o desembarque das mercadorias que chegavam a Formiga. Na extremidade dessa sala havia ainda uma instalação sanitária e um bar, cujo balcão era voltado para a plataforma. Segundo Hélio Pinto, esse estabelecimento comercial era conhecido como “Bar da Geni” e funcionou até fins da década de 1960, vendendo sucos, doces e salgados para os passageiros. Segundo o mesmo Claudinê, quando foi extinto o transporte de passageiros, o fluxo de passantes pela estação já era bem mais escasso do que no período em que ele trabalhou na rede ferroviária.”

(Complementação de dossiê de tombamento e laudo de conservação da estação ferroviária, 2007, p 10)

Transformações do espaço

Em 1976, o Grupo Executivo de Integração de Política de Transporte, ligado ao Governo Federal, determinou a erradicação dos ramais ferroviários de transporte de passageiros. Em 1988 foi encerrada a circulação do trem de passageiros em Formiga. A essa altura, o transporte rodoviário já tinha ganhado bastante força e se tornado a principal opção para viagens, principalmente por ser mais rápido e mais acessível.

Fim da circulação do trem de passageiros

Em 1976, o Grupo Executivo de Integração de Política de Transporte, ligado ao Governo Federal, determinou a erradicação dos ramais ferroviários de transporte de passageiros. Em 1988 foi encerrada a circulação do trem de passageiros em Formiga. A essa altura, o transporte rodoviário já tinha ganhado bastante força e se tornado a principal opção para viagens, principalmente por ser mais rápido e mais acessível.

Ocupação do complexo ferroviário

Durante a década de 1990, o Complexo da Estação Ferroviária de Formiga permaneceu desativado. A Casa do Engenheiro e a estação passaram a ser frequentadas por jovens e outros moradores da cidade, que se reuniam nesse espaço para aproveitar tanto os pés de frutas (principalmente manga) da Casa do Engenheiro, quanto para ouvir música, encontrar amigos e até para aproveitar a piscina nos fundos da Casa do Engenheiro. Porém, com o tempo, esse patrimônio foi sendo depredado e passou a ser palco de atividades ilícitas. Entre 1988 e 2001, a estação e a Casa do Engenheiro permaneceram desocupadas até que, em 2001, os equipamentos foram adquiridos pelo município e reformados.

Tombamento da Estação e da Casa do Engenheiro

Em 2000, a Prefeitura de Formiga empenhou-se na aquisição dos prédios da Estação Ferroviária e da Casa do Engenheiro, formalizada em 2001. Em 27 de março do mesmo ano, houve a inauguração do prédio da estação já totalmente reformado, que passou a abrigar a Secretaria Municipal de Educação. Na reforma, foram mantidas as principais características arquitetônicas com pequenas alterações, como a construção de banheiros, cozinha, troca dos pisos e do sistema elétrico, reparos nos encanamentos, colocação de divisórias e grades.

Em junho de 2003, foi inaugurado no prédio da Estação Ferroviária de Formiga o Museu Histórico Municipal Francisco Fonseca, com centenas de objetos que remetem à história do município. Há peças relacionadas às atividades econômicas desenvolvidas na cidade ao longo do tempo e objetos ligados à vida cultural e religiosa dos habitantes de Formiga. Há ainda o desejo local de fortalecimento do espaço com a criação de um plano museológico.

Reformas e usos atuais

Em 12 de abril de 2004, diversos bens móveis e imóveis foram tombados. Dentre esses bens estavam o prédio da Estação Ferroviária, a Casa do Engenheiro, Casa de Rádio e o Vagão de Passageiros. Nesse mesmo ano, o prédio da estação passou a abrigar também a Secretaria Municipal de Cultura e foram iniciadas algumas reformas na Casa do Engenheiro, em caráter emergencial. Em 2005, o telhado do prédio foi reformado. Nesse mesmo ano, o espaço foi utilizado para um evento chamado “Estação Cult”, que incluiu desfiles de moda e apresentações artísticas. Em virtude desse evento, suas paredes externas e internas foram novamente degradadas. Em 2012, é inaugurado o Centro Cultural na Casa do Engenheiro, que permaneceu fechado até 2014 devido a problemas estruturais. Em 2014 a Casa foi reinaugurada e passou a ser a sede da Secretaria Municipal de Cultura e o Centro Cultural Casa do Engenheiro. Em 2017, mudou de nome para Centro Cultural Claudinê Silva dos Santos, permanecendo assim até hoje.

Vagão biblioteca-Vagão Museu Teixeira Soares

O vagão foi conseguido junto à Rede Ferroviária Federal em março de 2002 em regime de comodato e foi reformado; a partir de outubro de 2002 passou a abrigar uma biblioteca municipal até 2005. Entretanto, em virtude desse uso, esse bem imóvel sofreu certos desgastes físicos. Por isso, foi necessária a realização de uma nova intervenção, em que foram realizados reparos como a retirada do mofo e uma pintura. Além disso, foi construída uma cobertura em telha francesa sobre o vagão, procurando harmonizar a estrutura com a arquitetura do prédio da estação e protegê-lo das intempéries. Atualmente o vagão é o Museu Ferroviário João Teixeira Soares, que preserva a história ferroviária no município, objetos antigos da estação e acervos de ferroviários da cidade. É constante, entretanto, o desafio da educação patrimonial e da conscientização sobre a importância da preservação e do cuidado com o espaço por parte de todos os moradores.

A transformação da praça da Estação e diversos usos do espaço

Com o tempo, a praça e o perímetro em volta da estação sofreram muitas mudanças: a construção do Clube Centenário e outras construções em frente à entrada da estação mudaram completamente a paisagem e a imagem da praça, que era continuidade da estação.

Como é possível constatar depois do fim da circulação do trem de passageiros, os equipamentos da rede ferroviária foram usados de diversas formas pelos moradores da cidade e continuaram a fazer parte da história de Formiga. Muitos eventos culturais aconteceram e ainda acontecem nesse espaço – que se tornou patrimônio de todos os moradores.

“Foi parando aos poucos né? As viagens de trem. E pra mim foi uma perda enorme, porque foi um pouco da história nossa que se foi, da cidade e de cada um de nós, filhos dos ferroviários.”

Relato de Heloísa Silva de Sousa Pinheiro, filha de ferroviário.

“Nós fomos os últimos moradores; depois eu não sei quanto tempo a rede conseguiu manter a casa fechada intacta, né? Eu sei que, depois que eu me mudei daqui, a primeira vez que voltei, nossa, foi triste… Foi tão triste que não queria voltar mais.”

Relato de Liége Passos Mendes, filha de ferroviário.

“A gente, então, usou muito aquele espaço, com toda aquela atmosfera da rede, e foi muito interessante; aí nessa época a gente construiu o museu da ferrovia, e foi nesse governo do Juarez que a gente começou resgatar algumas daquelas peças que estão lá até hoje. Quando eu estava lá como secretária, tanto no vagãozinho quanto no museu, a gente trouxe muitas crianças pra visitar, pra conhecer, pra ouvir história e pra resgatar essas histórias. Sempre tinha um encantamento de levar as crianças pra ver, pra resgatar o que a rede significava – e elas adoravam ir pra lá, ver o trem passar… Elas adoravam sentar ali pra fazer piquenique. Então foi uma época muito interessante quando a Secretaria de Educação funcionou de um lado, e do outro lado era o museu.”

Relato de Vera Lúcia Alves Teixeira, nora de ferroviários.

Contradições das condições de trabalho

As relações de trabalho eram marcadas por rigorosa hierarquia. O cargo mais alto era do Engenheiro-Chefe, responsável pela fiscalização das condições físicas, de segurança e pela chefia dos demais funcionários. Os cargos de hierarquia maior gozavam de certo conforto e de algumas vantagens. Já os trabalhadores braçais da via permanente eram a base da pirâmide do trabalho na rede ferroviária, com uma carga de trabalho pesada e, muitas vezes, perigosa. Ficavam semanas fora de casa, longe de suas famílias. Por isso, trabalhar na ferrovia no século 20 poderia ser sinônimo de status social, vida confortável e ascensão econômica, mas também poderia significar, naquele período, trabalho pesado, problemas de saúde e até, muito comumente, riscos à saúde mental, propensão a vícios (abuso de bebidas alcoólicas), entre outros. Assim, ao relatar as condições de trabalho na ferrovia no século passado, aparecem sentimentos como a saudade e a alegria, mas também a tristeza e a revolta.

O trabalho de quem fica

Enquanto muitos homens trabalhadores da ferrovia ficavam fora de casa a trabalho por várias semanas, as mulheres cuidavam da criação dos filhos, manutenção doméstica, preparo de alimentos etc. Muitas vezes, também, ficavam a cargo de complementar a renda da família. Várias faziam os mais variados tipos de trabalho, como lavadeiras, costureiras, professoras, parteiras, salgadeiras, dentre outros.

Doze Depoimentos

Ofício herdado

“Nasci em Bambuí. Saí de lá com 8 anos e nunca mais voltei. Quando vim pra cá, já vim empregado com 19 anos, já era empregado na rede, já. Comecei a trabalhar na rede em 1948 e trabalhei por 33 anos e 3 meses na rede ferroviária; 31 anos eu trabalhei como efetivo, e 2 anos e 3 meses como contratado. Primeiramente eu trabalhei com meu pai, no primeiro ano, em 1948; e em 49 eu já era empregado da rede. Meu pai era empregado da rede, e ele morava em Catalão.”

Relato de Onofre Jacinto Montijo, ferroviário aposentado.

Noite adentro

“Antes de vir para Formiga, eu trabalhava em Monte Carmelo. Aí em 1948 me transferiram para cá e andei por aí. Quando eu entrei, a minha função era trabalhador de tração. Trabalhar com o trado é furar e pregar o dormente. Naquele tempo era muito difícil: não tinha hora, não, a gente emendava dia com noite trabalhando. Eu tinha que ter força pra trabalhar. E aquilo não tinha hora não: era noite adentro e amanhecia o outro dia. Isso foi durante uns tempos, até que eu adoeci e me mandaram para trabalhar lá na residência, e depois na Casa do Engenheiro, e lá eu fiquei alguns anos. Lá na Casa do Engenheiro eu trabalhava no jardim. Lá tinha um jardim que era uma beleza, nossa senhora! Tinha a casa lá em cima que fazia gosto. Era bonita a casa lá.”

Relato de Onofre Jacinto Montijo, ferroviário aposentado.

Equipe de resgate

“A minha história com a ferrovia, ela começa lá atrás, na minha infância, porque meu pai foi ferroviário. Meu pai trabalhou na rede ferroviária; não foi muito tempo, foram só quatro anos. Ele fazia parte dessa equipe de resgate. Ele trabalhava na via permanente e se chamava Aristides Ribeiro da Silva.”

Relato de Altair Ribeiro da Silva, ferroviário aposentado.

O trole e o lastro

“Eu fui motorista rodoviário na ferrovia. Isso foi criado depois, exatamente com as modernidades que vêm acontecendo. Antes de mim, por exemplo, na época do meu pai, era o trole e o lastro. O lastro era uma máquina a vapor com duas pranchas abertas, onde carregavam trilhos, dormentes e homens. Quase que posso dizer que não tinha muita segurança.”

Relato de Altair Ribeiro da Silva, ferroviário aposentado.

DNZ

“Entrei para a ferrovia com 23 anos. Fiz o concurso pra trabalhar de auxiliar de agente de estação. Passei e fui pra Belo Horizonte, fiz os exames todos e entrei. Comecei trabalhando como telegrafista, mas primeiro eu fiz um treinamento em Lavras, porque a telegrafia é como você aprender a escrever de novo. Então o telegrafista, pra falar que é telegrafista mesmo, para mexer com telegráfico, é um tempinho pra estudar, então entrei lá e fiz o treinamento. Eu consegui ir trabalhar em Timboré. Entrei na rede e pouco tempo depois me casei. Meu nome de guerra na ferrovia, inclusive, meu prefixo lá na área de telegrafia era Diniz; cada telegrafista tinha um prefixo, DNZ. Depois eu fui promovido a agente especial de estação, em Candeias.”

Relato de Antônio de Oliveira Diniz, ferroviário aposentado.

Hierarquia

“Meu pai foi cozinheiro muito tempo até quando ele descobriu uma lesão na coluna. Aí, primeiro ele foi cozinheiro, ele ficava muito em pé, começou a dar dormência por causa do nervo ciático, essas coisas. Ele passou a ficar reclamando até que passaram ele para ser guarda noturno, e foi até aposentar. Ele aposentou como guarda noturno. Nessa época ele já não era mais trabalhador braçal, porque era assim: a categoria era o chamado operador manual, o trabalhador de linha, depois tinha o tal do feitor. O feitor é como se fosse um chefe acima deles. Eles eram os trabalhadores, aí tinha o chefe deles, depois tinha o mestre de linha, que era o chefe geral; acima do mestre de linha tinha um engenheiro. Essa era a hierarquia. Dos piões, uns que eram motorista de linha, outro já era carpinteiro, e outros eram mais peãozada mesmo.”

Relato de Waltercides Montijo, filho de ferroviário.

Tudo manual

“Antigamente trabalhar na ferrovia era muito sofrido. Eu me lembro que meu pai era bombeiro na ferrovia; hoje não existe mais. Ele dava manutenção naquelas caixas-d’água. A máquina parava e tinha que encher de água. Às vezes até de madrugada. Às vezes dava defeito, e não tinha telefone. Vinha gente chamar e ele tinha que consertar a qualquer hora. Mas ele tinha outra função também: quando eu era menina, ele trabalhava na pedreira, lá embaixo: quebrava pedra com uma marreta de 35 kg, era tudo manual. Ele também trabalhava aqui na estação, tinha uma oficinazinha lá, trabalhava no fole, fazendo ferramentas. Ele trabalhou uns 42 anos e passou por diversos cargos: começou como cortador de pedra, depois foi ferreiro e por último bombeiro.”

Relato de Anélice de Azevedo Silva (Dona Cica), filha e esposa de ferroviário.

Gerente

“Meu avô era o agente da estação. O agente é o que toma conta de tudo, quadro de horários, tudo. Como se fosse o gerente. E o engenheiro era responsável pelas obras e tudo de manutenção. Então, meu avô, ele era quem coordenava, ele era o responsável por toda a movimentação de chegada e saída de trem e cargas. Tinha que organizar as cancelas, também, porque naquela época era carroça, né? Ele se chamava Lívio da Silva Maia. Ele aposentou como funcionário da rede, a Rede Mineira de Viação, lá em Belo Horizonte. O trem era a paixão da vida dele!”

Relato de Márcio José Maia Figueiredo, neto de ferroviário.

Sem uniforme

“Meu pai começou na rede mais ou menos em 1963; inclusive, ele aposentou em 1993. Eu acho que quando ele aposentou tinha 30 anos de trabalho, mas pode ser que eu tenha errado, mas, se eu estiver errando, é pouco. Em 1978, a gente foi para Belo Horizonte, e lá ele já trabalhava na área comercial, no escritório de lá. Ele não tinha uniforme; o engenheiro não tinha uniforme em nenhum dos lugares que a gente morou.”

Relato de Wesley Passos Mendes, filho de ferroviário.

Auto de linha

“O papai como engenheiro residente, ele tinha um auto de linha do engenheiro residente. Esse auto de linha do engenheiro residente tinha cama, porque às vezes ficava na linha por causa de acidente durante dias. Então, tinha tipo uma cama, porque o papai dormia na linha quando tinha acidente longe. Ele era todo fechadinho; era como se fosse um trailer. Ficava estacionado na garagem e só saía com ele, aí era exclusivo dele. Era exclusivo do engenheiro residente. E eu adorava andar de auto de linha. Pra criança isso parecia brinquedo, né?”

Relato de Liége Passos Mendes, filha de ferroviário.

Do trilho à carpintaria

“A rede na época era teste. Ele fez um teste presencial e conseguiu a vaga. Era uma prova em que eles precisavam mostrar o serviço deles. Dava uma tarefa e mandava eles fazerem. Ele e mais dois irmãos foram fazer, ele e o irmão mais velho passaram, e o outro não passou. Depois ele teve a chance de ir pra carpintaria da rede. Ele trabalhava antes de ronda e de serviço braçal, trocando os dormentes, arrumando trilho, capinando na margem do trilho. Depois teve uma outra prova, ele passou, foi pra carpintaria. Ele trabalhou muito lá na Casa do Engenheiro. Aí, eu lembro de ouvir ele contar muitas histórias de lá, porque eles tinham que reformar a casa quando vinha um novo engenheiro, e como o meu pai era carpinteiro, ele fazia esse serviço.”

Relato de Heloísa Silva de Sousa Pinheiro, filha de ferroviário.

Dormente e ronda

“Trabalhei de cozinheiro na linha carregando dormente, e de ronda, também. Fazer a ronda da linha é que dava trabalho. Demorava, tinha que fazer a ronda três vezes na semana e conferir se estava certinho para o trem passar. Foram 26 anos na ferrovia. Quando entrei já tinha 30 anos. Antes disso, trabalhei de servente. Quem me levou foi um parente que já trabalhava lá. Abriu vaga, e ele perguntou: ‘Você quer trabalhar?’, e eu falei: ‘Uai, eu quero’. Ele arrumou e pegava serviço 7 horas até às 4 da tarde. Eu trabalhei muito em Arcos, também. Lá nós dormíamos nos vagões; tinha também as casas que a turma ficava. A casa da turma era só pra fazer comida. Lembro muito dos meus companheiros de serviço. Tinha muitos amigos. Saíamos para beber pinga.”

Relato de Sebastião Herculano Rosa, ferroviário aposentado.

Filhos da Ferrovia

Os familiares dos ferroviários tinham alguns benefícios custeados pela Rede, como é o caso das cooperativas e armazéns, onde se podia comprar alimentos mais baratos. As viagens para os ferroviários e seus filhos também eram gratuitas: os filhos dos ferroviários utilizavam uma carteirinha para viajar para qualquer destino da EFOM. Muitos filhos carregam consigo as lembranças da vida de trabalho de seus pais: os longos períodos em que viveram sem a presença paterna; a luta diária para lhes proporcionar uma vida mais confortável; às vezes, quando os pais trabalhavam mais próximos e iam levar marmitas ou cafés para eles; as festas de final de ano que a companhia promovia para as famílias; e as brincadeiras de criança à beira da linha. Alguns desses filhos escolheram seguir o caminho dos pais e também fizeram carreira nas ferrovias.

Depoimentos

Vida de ferrovia

“Eu nasci no município, só que lá em Timboré. Meu pai trabalhava lá na época, na ferrovia, e eu nasci lá. Essa vida de ferrovia… Cada época a gente tá num lugar. Aí eu nasci lá, cresci lá, fiquei lá até um certo tempo. Depois meu pai foi promovido e foi assumir a sessão lá de Candeias; aí nós mudamos pra lá. Aí depois ele veio pra Formiga. Voltamos pra Formiga, e aqui meu pai aposentou. Meu pai se chamava José de Oliveira Diniz, mas se você falasse esse nome ninguém sabia quem era: todo mundo conhecia meu pai por Zé Tavares. Meu pai foi trabalhador de linha. Ele era feitor.”

Relato de Antônio de Oliveira Diniz, ferroviário aposentado.

Ausência no cotidiano

“A gente não teve a presença dele no cotidiano, igual os meus filhos têm a minha. Eu fui criado com ele vindo no final de semana, quando vinha. Na verdade, quem conduziu mesmo as tarefas de mandar pra escola, de cuidar, foi a minha mãe. Ela que segurou; ele era o gestor financeiro. Ele trabalhava para colocar a comida em casa, mas quem cuidava era a minha mãe.”

Relato de Waltercides Montijo, filho de ferroviário.

Gestora de muitas mãos

“A rede ferroviária foi gestora de muita mão de obra em Minas Gerais: em Campo Belo, Perdões, Formiga, Arcos… Onde ela passava, em polos de cidades maiores, ela destacou muito; é muita gente que sobreviveu dela, muitas famílias.”

Relato de Waltercides Montijo, filho de ferroviário.

Cotidiano

“O meu envolvimento com a rede ferroviária também é esse cotidiano, de levar comida pro meu pai quando ele estava nessa fase de trabalhar no município de Formiga. Eu que levava a comida, porque ele gostava. Como ele ficava fora, de tempo em tempo, ele estava num lugar, aí a minha mãe fazia comida, e eu ia levar pra ele, até onde dava pra eu ir, a pé ou de bicicleta eu ia com o caldeirão. A comida que minha mãe fazia, ela colocava numa capanga e eu levava pra ele: levava café, levava comida, e ali ele almoçava e de tardezinha chegava em casa. Depois, quando já estava mais distante, ele partia nesses vagões que eles dormiam.”

Relato de Waltercides Montijo, filho de ferroviário.

Passe-Livre

“A gente tinha uma carteirinha para usar, aí vinha um cara, o chefe – era o agente. Ele vinha com um negócio assim, tipo um grampeador, perfurando as passagens. A passagem era um ticketzinho, aí ele saía, vinha com um boné igual de maquinista, todo trajado de paletó. Era bem-vestido o cara, era um uniforme mesmo. A gente não pagava. Tinha a carteirinha, e a gente ia no escritório da chamada residência aqui em Formiga. Aí você chegava com a carteirinha, e tinham lá os escriturários que eram funcionários da rede. Eles emitiam o passe: é como se fosse um passaporte mesmo. A gente tirava o passe do bolso e mostrava junto com a carteirinha. A minha carteirinha eu a guardo até hoje. Minha mãe, por exemplo, tinha a dela como cônjuge, e eu tinha a minha como dependente.”

Relato de Waltercides Montijo, filho de ferroviário.

Braços da ferrovia

“Meu pai sofreu demais, sofreu muito. Sofre até hoje porque não tem aumento na aposentadoria, não tem o devido reconhecimento da importância que eles têm. São esses caras com seus braços que desbravaram esse país. Eles que fizeram esses cortes na mão, na picareta; não era com máquina, não, era na unha, na picareta. Então, a minha insatisfação com a rede ferroviária é isso: eles não valorizam os homens que ela teve. Meu pai, por estar vivo, é um deles, um homem simples que deu a vida dele, a força bruta que ele tinha nos braços, pra rede ferroviária, e hoje não tem valor. Não tem aumento. É uma história bonita, porque eles não tinham outra oportunidade, não tinham escola, eram todos primários, não estudavam. O foco era trabalho, trabalho, trabalho.”

Relato de Waltercides Montijo, filho de ferroviário.

Viagens

“A gente tinha 75% de desconto na passagem. A gente viajava pra todo lado. Minha mãe gostava de viajar porque pagava pouco, né? Ia para Uberlândia, Uberaba, Campo Belo, a gente ia nesses lugares aqui perto, assim, em Minas, a gente ia pra todo lado. Fui muitas vezes em Aparecida do Norte de trem. Era jardineira naquele tempo, que é aquele caminhãozinho que tem a parte de trás. Para ir em Belo Horizonte, saía daqui às seis da manhã e chegava lá às seis da tarde. Era maria-fumaça na época. A gente ia sempre de primeira classe. Já pagava mais barato mesmo… Antigamente a segunda classe era de madeira.”

Relato de Anélice de Azevedo Silva (Dona Cica), filha e esposa de ferroviário.

Dormentes

“Ele trabalhava das sete às quatro e tinha uma hora de almoço. Quando ele vinha pra casa, ele trazia aqueles dormentes que trocava, aqueles que estavam estragados, podres. Sempre quando ele vinha pra casa, ele trazia um dormente nas costas, porque era fogão de lenha, né? Antigamente não existia fogão a gás. Então, ele trazia nas costas um dormente. Aí a gente aproveitava o dormente pra poder cozinhar. Chegava lá em casa e ainda partia os dormentes e tudo. Quando ele ia tomar banho para descansar, ele já tinha deixado o dormente picadinho.”

Relato de Anélice de Azevedo Silva (Dona Cica), filha e esposa de ferroviário.

Toda ajuda é bem-vinda

“A gente era pobre, né? E a gente criava os filhos com toda a dificuldade, mas eu toda vida fui de muita expediência, sabe? Eu não tinha vergonha de nada. Se fosse preciso eu pedir ajuda, eu pedia. Não passava aperto, não. Eu ficava sozinha com os nossos filhos, eram oito, e era uma casa sem segurança nenhuma. Eu dormia sozinha com os meninos, e nunca me aconteceu nada. Eu não tinha vergonha de chegar e pedir ajuda; eu sou despachada até hoje. Até hoje eu viajo pra todo lado, sozinha, faço amizade com todo mundo. Tem nada que me esbarra.”

Relato de Anélice de Azevedo Silva (Dona Cica), filha e esposa de ferroviário.

Mamãe Rede

“Eu sou a quarta filha de onze irmãos. Eu cresci acompanhando meu pai trabalhando na rede. Foram 31 anos de vida dele trabalhando na rede: aposentou em 1982. Ele chamava Altino Bento de Souza. Até ele falava “mamãe Rede”, porque ele e os colegas achavam que a rede era uma empresa muito boa. Naquela época, valorizava o trabalhador e dava muitos benefícios e vantagens… Muitos colegas de trabalho passavam a ser amigos, visitava-se nas casas, participava de festa de casamento nas casas. Nós somos onze irmãos, e nós todos adoramos o trem, é a história de vida da nossa vida. E meu pai, como gostava muito da rede, sempre elogiava, então a gente passou a gostar também.”

Relato de Heloísa Silva de Sousa Pinheiro, filha de ferroviário.

Rede de apoio

“A minha mãe era muito unida com a cunhada, né? Então uma ajudava a outra. A minha avó também ajudava, estava sempre lá em casa, mas nunca faltou nada não, sabe? Assim, passava aperto, porque eram muitos filhos e só meu pai trabalhava, mas ele já tinha casa própria e, com a minha avó por perto, tinha assistência.”

Relato de Heloísa Silva de Sousa Pinheiro, filha de ferroviário.

Destino

Então, eu cresci em beira de linha. Eu via aqueles trens passarem e achava aquilo bonito. Aí falei assim: ah, acho que meu fim vai ser naquele caminho. Eu tinha uns 10 anos de idade e ficava olhando aquilo, e no fim acabei fazendo o que eu tinha vontade. Fiquei na rede ferroviária por 31 anos.”

Relato de Onofre Jacinto Montijo, ferroviário aposentado.

O apito do maquinista

“Então, uma história curiosa era que, de acordo com o apito, a gente sabia qual maquinista estava vindo. Cada maquinista apitava de um jeito; inclusive, tinha um que era daqui. Ele chamava Manoel; não me lembro do sobrenome. O apito dele era diferente. Então, quando o trem apitava lá no papagaio, que é uma comunidade rural pra cima de onde a gente morava lá nesse acampamento dos ferroviários, a gente corria pra beira da linha para ver o trem passar. Como éramos crianças, tínhamos sempre aquela curiosidade de estar perto da linha pra ver o trem passar.”

Relato de Altair Ribeiro da Silva, ferroviário aposentado.

Pedrinhas no trilho

“Na infância adorava colocar pedra no trilho, na linha, para o trem sair. Eu era apaixonada e eu não punha pedrinha, não, punha era praticamente pedrona, porque a gente ficava escondido pra ver se o trem saía. Olha que bobagem!”

Relato de Bernadete Maria de Carvalho, moradora da cidade.

Gado na linha

“Eu tenho lembrança de pegar gado, porque eu também vou muito pra roça. Está sempre no meu caminho, o trem. O povo perdia o gado. ‘Onde que está?’; ‘Ah, seguiu a linha do trem?’. Como a gente morava no interiorzinho, né? Então a nossa cidade sempre foi rodeada com isso.”

Relato de Bernadete Maria de Carvalho, moradora da cidade.

Pulando o trem

“Quando eu era criança e estava indo para a escola, às vezes encontrava o trem parado no meio do caminho. E o que a gente fazia? Pulava. Ficavam dois olhando pra ver se o trem não mexia; a gente ficava pulando. Hoje a gente lembra e ri. Na época era uma brincadeira. Perguntavam: ‘Você pulou, você pulou, você pulou?’, ‘Pulei.’, ‘Que isso?’. É mulher e pulou. São lembranças bem boas.”

Relato de Bernadete Maria de Carvalho, moradora da cidade.

Lembranças tristes

“Eu tenho umas lembranças tristes também relacionadas à linha de trem. Eu moro em Santo Antônio, então, assim, lá tem uma linhazinha que passa ali. É muito escuro, e feio. Depois que eu estou lá aconteceram suicídios; as pessoas se jogam também, pra perder a vida. Então, assim, também é uma lembrança muito ruim que a gente tem disso.”

Relato de Bernadete Maria de Carvalho, moradora da cidade.

Segurança no trabalho

“Meu pai tinha uniforme de peão; me lembro que o uniforme dele era um uniforme de linho grosso de cor laranja, uniforme que a rede dava ou vendia, não sei se não me falhe a memória. Mas era um uniforme grosso, uma calça grossa, uma botina. A botina dele tinha uma chapa de ferro na ponta de aço, era uma botina pesada. Usava para evitar acidente; não existiam aquelas máquinas que puxam o trilho. Pegava na mão. Era aquele monte de homem que pegava o trilho e jogava em cima da prancha. Então eles tinham essas botinas, toda coberta de uma chapa de aço porque, se caísse, não machucava o pé. O único equipamento de segurança que eles tinham era esse, e tinha também um capacete, só, e mais nada.”

Relato de Waltercides Montijo, filho de ferroviário.

Soterrado

“Meu pai já sofreu alguns acidentes trabalhando na rede. Uma vez eles estavam mexendo num barranco: a margem da rede e o barranco caíram. Soterrou ele e mais uns funcionários, mas o socorro chegou a tempo e ele não morreu. A cabeça dele ficou pra fora; terra pegou pra baixo. Aí ele foi parar no hospital e ficou uma semana no hospital. Isso eu lembro bem.”

Relato de Heloísa Silva de Sousa Pinheiro, filha de ferroviário.

Atropelamentos

“Lembro quando morreu um casal, né? Tinha dois casais no carro. Aí morreu a esposa de um e o marido da outra. Estava dentro do carro ali, perto da praia. Um vizinho nosso lá do nosso arraialzinho também morreu de acidente de trem. Bebeu demais, aí pegou a moto, foi atropelado.”

Relato de Heloísa Silva de Sousa Pinheiro, filha de ferroviário.

A travessia da lagoa

“Eu estava lá em Candeias e eu tinha soltado o trem daqui (Formiga) direto para lá. O trem sumiu, foi onde que pensei: ‘Aconteceu alguma coisa’. Quando chegou lá em Candeia, o auxiliar de maquinista era quem estava tocando o trem. E o maquinista, coitado, estava praticamente em estado de choque. ‘E o que aconteceu? Foi acidente? É. Atropelamos um carro na travessia lá da lagoa em Formiga, duas mortes, e o outro eu não sei se escapa’. Eles pegaram os dados das pessoas, porque a gente tem que dar comunicação do acidente. Quando eu vi os dados, vi que era minha prima, o marido dela e um rapaz que tinha apelido de Fubá, que era garçom do bar onde eles estavam e tinha pagado carona com eles. O marido da minha prima foi o único que sobreviveu.”

Relato de Antônio de Oliveira Diniz, ferroviário aposentado.

Não vai parar

“Infelizmente o trem não para, não tem jeito. Não é igual carro, ainda mais pesado igual estava. Não para de jeito nenhum. A roda é lisa, o trilho é liso, e o peso, empurrando, não tem como parar.”

Relato de Antônio de Oliveira Diniz, ferroviário aposentado.

Ladeira abaixo

“Uma vez eu caí do trem, uai. Me enviaram com a turma nessa máquina a vapor. A máquina estava parada, e eu estava comendo. De repente a máquina deu um arranco; eu estava com um prato de comida na mão. Quando vi eu tive que pular pra fora e rolei ladeira abaixo. Pulei pra me salvar. Tinha uma placa pra entrar na ponte, mostrando sinal para os maquinistas e, quando eu pulei, quase bati a cabeça nela.”

Relato de Sebastião Herculano Rosa, ferroviário aposentado.

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