No terceiro eixo apresentamos a chegada e os impactos da ferrovia na cidade, destacando como os trilhos transformaram a organização urbana, a economia e a vida cotidiana da população. Reunimos conteúdos sobre a construção das estações, os planos de urbanização que surgiram em torno delas e as diferentes fases da construção da linha férrea, desde a instalação inicial da Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco até sua ampliação em direção ao sertão, mostrando como cada etapa trouxe novas dinâmicas para Alagoinhas. Além das referências históricas, o eixo traz memórias, relatos e objetos que mostram como o trem marcou o imaginário local, tornando-se símbolo de modernização, mobilidade e também de encontros, afetos e modos de viver.
“Olá, pessoal! Boas-vindas! Eu sou Antônio Ezequiel do Sacramento, mais conhecido como Jamelão. Tenho muito orgulho de dizer que sou ferreiro da Leste! Trabalhei a vida toda nas oficinas da ferrovia..."
A primeira metade do século 19 foi marcada pelo início da industrialização no Norte da Europa e pela consolidação das ferrovias. O primeiro trem circulou em 1804, e, nas décadas seguintes, surgiram os primeiros trens de passageiros e outros serviços ferroviários importantes. Esse novo modelo de transporte se espalhou rapidamente pelo mundo, chegando também ao Brasil, onde passou a integrar os projetos de modernização do Império. A primeira estrada de ferro do país foi construída no Rio de Janeiro e inaugurada em 1854.
Na mesma época, articulava-se a construção da primeira estrada de ferro da Bahia, que ligaria Salvador ao rio São Francisco, na altura da vila de Juazeiro. Em 1855, foi criada em Londres a Bahia and San Francisco Railway Company, empresa que recebeu a concessão para executar o projeto. Em julho de 1856, o início das obras da Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco foi oficialmente anunciado, incluindo em sua rota a Vila de Santo Antônio de Alagoinhas, escolhida por sua posição estratégica e pela riqueza econômica local, baseada na produção de tabaco, açúcar e gado.
O projeto da Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco trouxe promessas grandiosas: progresso, modernização e integração. A expectativa era de que os trilhos impulsionassem a economia, acelerando o transporte da produção agropecuária, que antes levava dias no lombo de animais. A passagem da ferrovia dava a Alagoinhas a possibilidade de afirmar-se como um polo relevante na região, atrair investimentos e ampliar sua rede de articulações políticas e econômicas.
Os três km que mudaram tudo
A expectativa da passagem da linha férrea por Alagoinhas, que tanta euforia causou à população, logo foi frustrada, quando os trilhos foram instalados a três quilômetros de distância do núcleo urbano da vila.
Em 1863, a Estação de Alagoinhas foi inaugurada e, nos anos que se seguiram, comerciantes, proprietários de terras produtivas e de criação de gado, além de políticos locais ocuparam as proximidades da estação. Diante do interesse da elite alagoinhense pela mudança, a presidência da Província transferiu, em 1868, a sede da Vila para o local onde foi implantada a estação. A medida não foi bem aceita por parte da população, que previu o esvaziamento de seus comércios e a desvalorização de suas terras.
Uma nova Alagoinhas é planejada
Entre 1868 e 1871, um plano urbanístico foi elaborado pelo engenheiro Trajano da Silva Rego, que promoveu o parcelamento ordenado das terras nas imediações da estação. Diferentemente do crescimento espontâneo observado em Alagoinhas Velha, a Nova Alagoinhas foi concebida a partir de um projeto racional, baseado em diretrizes planejadas de ocupação do solo.
O plano definia a localização dos principais equipamentos públicos. A linha férrea passou a ser o eixo orientador do traçado urbano, imprimindo uma estratégia que incorporou princípios europeus de racionalidade e funcionalidade, com ruas retas, largas e bem conectadas. A configuração inicial previa a Praça do Comércio como centralidade, destinada a dinamizar as trocas econômicas e sociais. Ao redor dela foram distribuídos os edifícios administrativos e comerciais, organizando o núcleo urbano de forma funcional.
“Toda urbanização se dá a partir de uma motivação e a motivação de Alagoinhas é a estrada de ferro.”Relato de Iraci Gama, professora, pesquisadora e defensora da linha férrea em Alagoinhas.
Rua da Câmara no século 19.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
Rua Visconde de S. Lourenço em 1912.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
Rua Conselheiro Moura em 1922.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
A Estação da Calçada
A Estação da Calçada foi uma das construções mais importantes da Bahia and San Francisco Railway Company, tanto por estar situada na capital, quanto por ser a primeira edificação ferroviária do Brasil construída com projeto inglês. A estação é um exemplo monumental da arquitetura eclética. Sua construção utilizou ferro em toda a estrutura, desde as fundações e pilares até as vigas, escadas, claraboias e cobertura, trazendo características inovadoras. As peças de ferro foram trazidas da Inglaterra e montadas no local, conforme registros oficiais da Província da Bahia.
A estação expressa a relação entre arte e tecnologia, combinando o tratamento artístico de sua estrutura principal com a praticidade dos ornatos industrializados, além da capacidade da estrutura metálica de vencer grandes vãos, como o da cobertura da estação de passageiros.
Estação Ferroviária da Calçada.
Fonte: Página Fotos Antigas de Salvador (Facebook).
Acervo: Cleber Dias.
A Estação de Alagoinhas
A Estação de Alagoinhas foi a última parada da linha ferroviária construída pelos ingleses, situada a cerca de 123 km da capital. A estrutura foi feita em ferro fundido, com cobertura e empenas também confeccionadas de ferro. As claraboias foram projetadas para permitir a entrada de luz natural nos espaços internos. Todo o material utilizado na construção, incluindo os tijolos das paredes, foi importado da Inglaterra.
Apresentando características da arquitetura eclética inglesa, a estação de Alagoinhas tinha dimensões mais modestas em comparação com as grandes estações terminais, como a Estação da Calçada. Seu projeto refletia a influência do estilo inglês, mas de forma funcional, exibindo um porte mais simples.
Estação Ferroviária de Alagoinhas no século 19.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
Estação Ferroviária de Alagoinhas, já desativada, com elementos da arquitetura alterados, sediando a Cesta do Povo.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
A Praça do Comércio
A Praça do Comércio, atualmente Praça J.J. Seabra, foi criada visando espaços públicos estratégicos voltados para o fluxo de pessoas e mercadorias, quando a vila começou a ser planejada de forma linear, com ruas amplas e retas.A praça foi projetada para dinamizar os contatos, facilitar negociações e intensificar a circulação de capitais. Muitos dos antigos proprietários de terras da Alagoinhas Velha ocuparam as suas proximidades e passaram a dedicar-se intensivamente às atividades comerciais.
Vista da Praça do Comércio e seu entorno imediato entre 1950 e 1970.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
Coreto central da Praça do Comércio em 1930.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
Pessoas junto às esculturas vivas realizadas pelo alagoinhense João Jardineiro, que esculpia diferentes formas nos ficus do interior da Praça J.J. Seabra, década de 1950.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
A Ferrovia que atravessou o Sertão
Por dezessete anos, a Estação de Alagoinhas foi o ponto final da Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco. Em 1871, foi autorizada a construção da estrada que finalmente ligaria Alagoinhas a Juazeiro. Em 1880, a estação inicial do novo trecho teve sua construção concluída: a Estação de São Francisco, que ficou conhecida como Estação do Prolongamento. Foram necessários mais dezesseis anos para que a linha chegasse a Juazeiro, em 1896. Portanto, passaram-se quarenta anos desde o lançamento da Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco até sua conclusão.
A Estrada do Prolongamento foi transferida para a Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer Fédéraux de l’Est Brésilien, ligada a bancos franceses e belgas, em 1910. No governo de Getúlio Vargas, a ferrovia foi novamente incorporada pelo Estado e passou a se chamar Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, que se tornou uma das maiores do país.
O trem encurtou distâncias, redesenhou fronteiras e ativou o comércio. As estações tornaram-se espaços de encontros, circulação de pessoas, mercadorias e notícias. Junto ao apito das locomotivas, chegaram novas lógicas de poder, de comunicação e o trem passou a fazer parte da vida das pessoas.
“Aqui era ponto de partidae de chegada. O entroncamento ficava exatamente aqui. Ele conduzia para Juazeiro, assim como para o litoral, porque ia até Aracaju, margeando boa parte da cidade.” Relato de Jefferson Correia da Conceição, professor e artista de Alagoinhas.
A Estação São Francisco
A Estação São Francisco representa um dos marcos arquitetônicos mais emblemáticos da história urbana de Alagoinhas. Inaugurada em 1880, sua construção se deu em dois momentos distintos: o primeiro com a edificação da estação de passageiros, e o segundo alguns anos depois, com a construção da parte da estação destinada à carga, descarga e armazenamento de mercadorias. O edifício incorpora elementos da arquitetura inglesa, especialmente de influência neoclássica e neogótica, compondo um conjunto de caráter eclético. A construção destaca-se pelo uso de tijolos aparentes, revelando a influência do estilo vitoriano inglês, detalhes ornamentais e proporções grandiosas. O edifício apresenta planta longitudinal, com eixo dez vezes maior que o transversal, centralizado por uma abóbada metálica monumental, de formato tão único que dá à Estação São Francisco uma identidade inconfundível.
Vista da Estação São Francisco.
Autoria: Totinha, 1996.
Acervo: FIGAM.
Estação São Francisco com destaque para sua abóbada.
Autoria: Totinha, 1999.
Acervo: FIGAM.
Vendedores ambulantes próximos a um trem de passageiros.
Autoria: Totinha, 1980.
Acervo: FIGAM.
Detalhes ornamentais, em ferro fundido, das bandeiras das portas da Estação São Francisco. Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
A Estação de Aramari
A Estação Ferroviária de Aramari, inaugurada em 18 de novembro de 1880, mesmo dia em que a Estação São Francisco, é a primeira parada rumo ao sertão, partindo de Alagoinhas. De proporções pequenas e arquitetura singela, ela segue o modelo das estações inglesas situadas em áreas rurais. No livro “Pelos caminhos da vida de uma professora primária”, publicado em 1978, a alagoinhense Maria Feijó ressalta as “dimensões pequeníssimas” da gare dessa estação, que se localizava em frente a uma praça, às margens da Estrada de Ferro. A autora também indica que Aramari era habitada por uma pequena população, em sua maioria formada por operários da estrada de ferro. Aramari foi distrito de Alagoinhas até 1961, quando se desmembrou e foi elevada à categoria de município.
Pessoas esperando o trem na estação de Aramari em 1880.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
A terceira estação
A terceira estação foi inaugurada em Alagoinhas, em 1947, por iniciativa do engenheiro Lauro de Freitas, então diretor da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro. Bem próxima da Estação de Alagoinhas, a nova estação passou a ser o ponto de contato para as viagens que se destinavam a Aracaju.A modernização da viação e a ampliação das linhas foram tônicas das décadas de 1940 e 1950.
Vista da terceira estação.
Autoria: Totinha, 1980.
Acervo: FIGAM.
Vista da fachada da terceira estação.
Autoria: Totinha, 1990.
Acervo: FIGAM.
O estilo arquitetônico que chegou com a ferrovia
O ecletismo é um estilo arquitetônico que surgiu em meados do século 19 e teve forte influência até os primeiros anos do século 20. A arquitetura eclética se relaciona diretamente com a ferrovia, pois é, assim como ela, um reflexo do seu tempo. Desde a Revolução Industrial, com o desenvolvimento das máquinas e dos avanços na área da engenharia, novos materiais como o aço e o vidro foram incorporados ao fazer arquitetônico, assim como o cimento e a cerâmica que se tornaram mais acessíveis e versáteis.
A disseminação dos materiais industrializados possibilitou o emprego de novas técnicas construtivas. Foi aí, por exemplo, que a alvenaria passou a ser largamente utilizada nas casas, que eram em sua maioria, erguidas com técnicas vernaculares, como taipa de mão e pau a pique. Como esses materiais eram novidade, seu uso era experimental e eles foram sendo incorporados às tendências arquitetônicas anteriores, como a clássica, a barroca e a gótica. É, portanto, um estilo de transição, que mistura as principais características de construções antigas e incorpora às obras as novidades industriais. As estações ferroviárias construídas em estilo eclético influenciaram a popularização dessa linguagem.
Trapiche de fumo de Antônio Martins de Carvalho Júnior. Inaugurado em 1894
Autoria: Totinha, 1980.
Acervo: FIGAM.
Prédio do Rádio Clube de Alagoinhas.
Prédio de Joaquim Cravo, onde funcionou Elegante Clube e um armazém de secos e molhados (térreo), inaugurado em 1921. O prédio passou a sediar a Rádio Clube de Alagoinhas em 1942. Autoria: Totinha, 1990.
Acervo: FIGAM.
Casa comercial onde funcionou o Armazém Progresso, com fachada de 1905.
Autoria: Totinha, 1980.
Acervo: FIGAM.
Casa comercial de Saturnino Ribeiro.
Localizada na esquina da Praça J.J. Seabra com a Rua Rodrigues Lima, construída em 1920.
Autoria: Totinha, 1980.
Acervo: FIGAM.
No caminho de Canudos
Situada entre Salvador e o sertão baiano, Alagoinhas tornou-se um ponto fundamental para a logística militar do governo republicano durante a Guerra de Canudos. Por sua posição intermediária e pela presença da ferrovia, que facilitava a circulação de tropas e suprimentos, a cidade serviu como rota de passagem para os contingentes enviados ao front e como local de encaminhamento dos soldados feridos, prisioneiros e doentes que retornavam do conflito. Muitos foram internados no hospital de variolosos, em enfermarias improvisadas na praça principal ou mesmo em barracas de lona espalhadas pela cidade.
O cenário descrito por Euclides da Cunha em seu Diário de uma Expedição evidencia os impactos diretos da guerra sobre o cotidiano local: ruas desertas, o desaparecimento da feira que movimentava a economia da cidade e a presença constante de mortos, feridos e militares. A população local, diante da ocupação militar e da tensão provocada pela guerra, vivia sob um clima de medo, confusão e insegurança. Os soldados, com suas armas ensarilhadas e munições em grande quantidade, intensificavam o ambiente de instabilidade.
“Alagoinhas, 31 de agosto de 1897.
Alagoinhas é realmente uma boa cidade extensa e cômoda, estendendo-se sobre solo arenoso e plano. Ruas largas, praças imensas; não tem sequer uma viela estreita, um beco tortuoso. É talvez a melhor cidade do interior da Bahia. Convergem para ela todos os produtos das regiões em torno, imprimindo-lhe movimento comercial notável. Isto, porém, dá-se em condições normais… Na quadra atual o taberéo anda esquivo e foragido; a grande praça principal da cidade em cujo centro se alevanta o barracão de feira de há muito não tem aos sábados, a animação antiga. Cada trem que de lá volta repleto de feridos é um espetáculo assombroso para as populações sertanejas […]” CUNHA, Euclides. Canudos: Diário de uma expedição. 1939.
Na vila de Queimadas, as prisioneiras sobreviventes eram transportadas em vagões de carga, para as prisões em Alagoinhas.
Autoria: Tripoli Gaudenzi, 1939.
Acervo: FIGAM.
Nas plataformas, o retrato do fim da escravidão
Entre 1863, ano em que a ferrovia entrou em operação em Alagoinhas, e 1888, quando a escravidão foi oficialmente abolida, coexistiam no Brasil dois sistemas de trabalho: o escravo e o livre. Com a abolição da escravatura, os mecanismos de absorção da força de trabalho tornaram-se mais complexos. Isso porque as pessoas que até então haviam sido escravizadas não tiveram acesso às condições ou oportunidades que possibilitassem novas formas de inserção no mercado, o que as levou a exercer, majoritariamente, ocupações informais. Muitos desses indivíduos, excluídos das oportunidades oferecidas pelos setores urbanos mais modernos, acabaram lançados às atividades de serviços e comércioautônomos, caracterizadas pelo sustento diário incerto e pela ausência de proteção em casos de doença ou velhice. Assim, especialmente nos arredores das estações ferroviárias, formava-se um conjunto de trabalhadores informais que viviam no compasso das chegadas e partidas dos trens. Eram jornaleiros, aguadeiros, vendedores ambulantes de doces, frutas e produtos da estação, além de carregadores de malas e mercadorias. A prática de vender nas plataformas perdurou até o fim do trem de passageiros, já no século20.
“Quem vendia laranja, estava com seu balaio de laranja, tinha sempre uma faquinha para tirar a casca. Descascava, já dava à pessoa em ponto de chupar. Nós fomos durante muito tempo a chamada “Terra da Laranja”. Também se vendia caju, as frutas da época, todas ali, sempre tivemos muita fruta. Aí, o café! O café, sempre passavam o café no bule, às vezes no bule de alumínio. Nós tínhamos uma senhora que morava ali, bem em frente à estação, que ganhou o apelido de Maria-café-quente, porque ela vendia o café quentinho.”Relato de Iraci Gama, professora, pesquisadora e defensora da linha férrea em Alagoinhas.
“Teve um dia que um trem descarrilhou. E, por conta disso, ele não chegou no horário. Nós ficamos horas e horas, sentados no chão da estação, comemos, chupamos laranja, manga geladinha, tomamos suco de mangaba, porque é uma coisa bem do sertão, né? Suco de mangaba, pastel que vendia ali… e seu Arlindo foi o maquinista que chegou rebocando o trem que tinha descarrilhado. E sabe? Parecia que era uma festa, uma estação cheia, todo mundo com mala e tudo, e todo mundo aplaudindo seu Arlindo. Quando eu vi que era ele, fiquei toda orgulhosa porque ele era o meu vizinho, né?! Meu vizinho!”Relato de Izabel Cristina da Silva, professora e escritora de Alagoinhas.
Água para o sertão
A ferrovia atravessava, em grande parte de seu percurso, regiões de clima semiárido, onde a escassez de água era uma realidade constante. O trecho entre Aramari e a antiga Vila Nova, atual Senhor do Bonfim, com 309 quilômetros de extensão, era considerado o mais seco de toda a linha. Os trens que circulavam por esse caminho tinham parte de sua capacidade destinada ao transporte de água em vagões-tanque. A iniciativade construir vagões-tanque para transportar água, de qualidade e gratuitamente, para as regiões mais secas, partiu de Lauro de Freitas, então Superintendente da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro.Esses vagões levavam água não apenas para abastecer as locomotivas, mas também para ser distribuída à população que vivia nas imediações da ferrovia. Nas paradas, moradores das comunidades próximas se reuniam nas estações, aguardando a chegada do trem com água potável.
“Foram muitos anos de construção das linhas, pela grande quantidade de percalços. O sertão era uma região de muita riqueza, mas também uma região de muito sofrimento, pela seca, pela falta d’água, a partir, assim, de Serrinha, Queimadas, Santa Luz. Então foram incluídos na produção carros-tanque, exatamente para levar água. O trem não levava só mercadoria, o trem não levava apenas passageiros, mas também levava água, e as pessoas se beneficiavam dessa água.”Relato de Iraci Gama, professora, pesquisadora e defensora da linha férrea em Alagoinhas.
“Meu bisavô, Aurelino Freitas Sacramento, era a pessoa responsável pela distribuição de água. Uma seca braba atingia essa região daqui para cima. Tem meio mundo de gente que veio para Alagoinhas, que migrou para cá, em função da seca! Minha mãe, por exemplo, veio por causa da seca, daqui de cima, de Irará. Meu bisavô era o responsável, ele botava os vagões de água que iam para s interiores, e o homem parecia que era o presidente da república! Só em função desse cargo que ele desempenhava.” Relato de Carlos Antônio do Sacramento, morador de Alagoinhas, filho, neto e bisneto de ferroviários.
“Eu comecei uma paixão pelo vagão-tanque. Aí, um dia, meu pai foi trabalhar e chegou à noite com um presente: o vagão-tanque, em miniatura! Era o preto, da Rede Ferroviária. Aquele antigão. Veio com um depósito de locomotiva!”Relato de Arthur, morador de Alagoinhas e colecionador de miniaturas de trens.
Vagão-tanque.
Distribuía água às populações residentes no percurso da ferrovia, 1936. (Viação Férrea Federal Leste Brasileiro).
Fonte: Site Centro-Oeste Brasil.
Acervo: Alexandre Saturian.
Santinho de propaganda eleitoral do engenheiro Lauro de Freitas.
Lauro de Freitas se tornou um homem muito influente na Bahia por ter dirigido a VFFLB, 1950.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
O trem de passageiros
“Quando o trem chegou a Alagoinhas, existia uma ideia muito voltada ao trem de passageiros.Naquele tempo, havia uma preocupação maior com a mobilidade humana. Por quê? Se era difícil você transportar a carga no lombo do burro, agora, imagineo deslocamento das pessoas. Era muito mais difícil para as pessoas. Não tinha rodovia, nem como fazer a movimentação a não ser a pé ou no lombo do burro. Então, transportar o passageiro era importante. O trem de passageiros, trazia essa oportunidade de movimentação para as pessoas.” Relato de Iraci Gama, professora, pesquisadora e defensora da linha férrea em Alagoinhas.
“Era algo assim… encantador! Porque eu tive a oportunidade de viajar algumas vezes daqui para Sítio do Meio, a localidade da qual a minha família saiu em 1956. Lembro, eu tinha seis, sete anos, do movimento e dos sons das máquinas; o movimento das pessoas, a venda de produtos… a chegada do trem de passageiros em Sítio do Meio era algo de muito alvoroço. Quando os passageiros desciam, em todas aquelas casas, de um lado e do outro, as pessoas saíam para ver quem estava chegando, com curiosidade mesmo, quem chegava com compras. Era o momento, o ponto alto daquela localidade.”Relato de Jefferson Correia da Conceição, professor e artista de Alagoinhas.
“E a viagem era fantástica. Para mim, era como se fosse uma televisão gigante. Porque aquele movimento era menos acelerado. Se voasse um passarinho, dava tempo de vê-lo. Uma árvore florida, um galho seco, tudo dava tempo de você ver. Um animal, vaca, por exemplo, ou qualquer outra coisa, as pessoas na estrada, dando tchau para a gente. E eu, pequena, na janela, também acenando. Até que o sono chegava. Porque o sono chegava! Aquele barulho, aquele vento, aquele cheiro…”Relato de Izabel Cristina da Silva, professora e escritora de Alagoinhas.
“Por incrível que pareça, parece brincadeira, mas o meu avô conheceu a minha avó em Serrinha, através de viagens de trem. Como eu falei, o pessoal antigamente viajava muito para o sertão, quem tinha interesses, né? Tanto para vender coisas, quanto para comprar. E o meu avô trabalhava com fumo, isso aqui era muito forte! Inclusive, tinha um trapiche aqui na frente (Estação de São Francisco). Nessa viagem, foi lá, viajou, vendeu o que ele tinha de vender, após isso… conheceu a minha avó! Aí, mantiveram contato, ele sempre utilizava o serviço da estrada de ferro para ir visitá-la.”Relato de Mauro Bitencourt, morador de Alagoinhas e neto de ferroviário.
“Nós tínhamos um trem que partia daqui para Salvador, ele saía de madrugada. Geralmente, às quatro e pouca da manhã, chamavam-no de Pirulito. Então, quando falavam assim: vamos viajar para Salvador? Eu já ficava ansiosa, não dormia, querendo que a hora chegasse. O trem, para mim, era uma diversão, uma maravilha, né? Encontrávamos todas as novidades por meio dos vendedores ambulantes. Eu lembro muito bem do pessoal que vendia doces, tinha um cheiro diferente, um aroma diferente.”Relato de Maria Edinalva, moradora de Alagoinhas, costureira, neta de vendedora ambulantes da estação e filha de ferroviário.
As Comunicações
A construção e a expansão dos eixos ferroviários não só reacenderam, como também deram as bases para concretizar o sonho de progresso arraigado no imaginário brasileiro da época. As distâncias diminuíram, os interiores e as capitais foram interligados, pessoas e mercadorias podiam ir mais longe, com mais rapidez e segurança. A comunicação foi otimizada, e o acesso à informação foi facilitado. As linhas férreas e os trens a vapor chegaram ao Brasil com uma inovação tecnológica que revolucionou a comunicação no país: o telégrafo, que permitia o envio de mensagens a longa distância de maneira rápida e eficiente. Seu funcionamento se dava pela transmissão de sinais elétricos por meio de um fio condutor. Com a utilização do código Morse, as mensagens eram convertidas em textos legíveis. O telégrafo foi incorporado ao funcionamento das ferrovias, permitindo a comunicação entre diferentes estações ferroviárias, o rastreamento preciso de trens, a programação eficiente de horários e a resposta imediata a eventos inesperados.
Mais tarde, outras tecnologias substituíram o telégrafo, como o Telex: um sistema de comunicação eletrônica que permitia o envio de mensagens de texto através de linhas telefônicas.
Outro sistema de comunicação, também utilizado pelas ferrovias, era o Staff. Trata-se de um sistema com dois aparelhos, cada um com bastões metálicos, conectados eletricamente entre estações vizinhas. Agentes na “Estação A” liberavam um bastão para o maquinista entregar na “Estação B”, garantindo exclusividade ao primeiro trem. Até que o bastão chegasse à “Estação B”, nenhum outro era liberado, evitando a circulação de outros trens no trecho.
“O trem sempre foi um elemento de comunicação. Primeiro, entre as pessoas. Depois, com o trem, veio o telégrafo. Os telegramas eram passados de dentro das estações. Na Estação de Alagoinhas funcionavam a agência e a subagência da estação, para a movimentação do controle dos trens e para a movimentação do controle da comunicação. A ferrovia é esse vetor também de movimentação, de comunicação, de contato, de tudo. As pessoas não tinham outro instrumento de comunicação. Tudo vinha através do trem.” Relato de Iraci Gama, professora, pesquisadora e defensora da linha férrea em Alagoinhas.
Telégrafo, aparelho de comunicação por código Morse.
Fonte: Álbum da Bahia, 1930.
Acervo: FIGAM.
Telegrama de serviço da CFVEB.
Telegrama enviado a Pedro Gama, em 1932, comunicando sua aposentadoria.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
O trabalho dos ferroviários
Com a inauguração da estrada de ferro, surgiram em Alagoinhas novas formas de trabalho diretamente ligadas à ferrovia, com um sistema de hierarquia bem definido e distribuído em cargos variados. Para que a ferrovia funcionasse bem, contava-se com o trabalho de muitas pessoas. Seja na condução dos vagões, seja na comunicação ou no comando da estação férrea, cada trabalhador contribuía de alguma maneira para que a ferrovia funcionasse e o trem pudesse seguir seu curso.
Surgiram também funções especializadas nas oficinas da companhia, onde se realizavam os consertos, as manutenções e a fabricação de peças para as locomotivas e vagões. Esses espaços eram considerados o coração técnico da ferrovia. Com trabalhadores especializados, cada ofício exigia habilidades específicas e contribuía para o bom desempenho de toda a linha férrea.
Os movimentos operários
Os funcionários da estrada de ferro em Alagoinhas e Aramari se orgulhavam de seu trabalho na ferrovia. Apesar das importantes tarefas desempenhadas, nem sempre o trabalho dos ferroviários era reconhecido e valorizado pela companhia. Reivindicando seus direitos, os ferroviários organizaram greves históricas sob orientação da Associação dos Ferroviários, criada quando a ferrovia estava sob administração da Compagnie AuxiliairedesChemins de Fer Fédéraux de l’EstBrésilien eque, a partir do século20, se tornou sindicato. O Centro Operário desempenhava o serviço social e educacional que ajudava os trabalhadores e suas famílias, a exemplo do apoio dado aos que estudavam; além disso, representava politicamente a classe ferroviária nas décadas de 1930 e 1940.
“Meu pai não tinha estudo, aprendeu a profissão na rede ferroviária. Mas me lembro dele falando de Getúlio Vargas, de João Batista Figueiredo, da Segunda Guerra Mundial. Os ferroviários tinham o sindicato, eles eram muito fortes e articulados.”Relato de Izabel Cristina da Silva, professora e escritora de Alagoinhas.
Diploma da Associação dos Empregados da Cia Ferro-viária do Éste Brasileiro.
Documento em nome de Pedro Gama, 1921.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
Cópia de recibos de pagamento da Associação de Ferroviários de 1950.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
As oficinas da Estrada de Ferro em Alagoinhas e Aramari
Nas oficinas da Estrada de Ferro, eram realizadas as construções, as manutenções e os reparos nas composições de passageiros e de mercadorias. Desde o início das atividades da ferrovia em Alagoinhas, foram instaladas oficinas para garantir o bom funcionamento da linha férrea. As oficinas desempenharam papel central na dinâmica ferroviária da Bahia, com destaque para o complexo de Alagoinhas, no entorno da Estação São Francisco, que foi ampliado na década de 1930. A oficina de Aramari, inaugurada em 1880, foi uma das mais importantes oficinas de classes de passageiros e vagões de mercadorias do país. Foi na oficina de Aramari que foi construído o trem de alumínio, que ficou conhecido popularmente como Marta Rocha.
“A sirene da oficina foi criada para marcar os horários dos ferroviários, mas ela acabava marcando o horário da cidade toda… Todo mundo conseguia ouvir. Isso acabava regendo a cidade inteira. Inteira!”Relato de José Jorge Damasceno, professor e pesquisador da história de Alagoinhas.
“Viemos de Ilhéus transferidos para Alagoinhas. Moramos em vagões da Leste, antes de conseguirmos uma casa aqui. Depois, tivemos sorte, conseguimos.Nessa época, meu pai saía para trabalhar e,no fim da tarde, ele retornava. Meu pai foi um bom carpinteiro na Leste!” Relato de Wilson dos Santos, morador de Alagoinhas, ferroviário e filho de ferroviário.
Vista de parte das oficinas São Francisco e Oficina Arlindo Luz
Autoria: Totinha, 1995.
Acervo: FIGAM.
Oficinas da Leste em processo de ampliação na década de 1930.
Fonte: FIGAM.
Acervo: FIGAM.
Oficinas da Estrada de Ferro em Aramari.
Fonte: Álbum da Bahia, 1930.
Acervo: FIGAM.
A Escola Profissional de Alagoinhas
A VFFLB criou em Alagoinhas, em 1941, a Escola Profissional que preparava os jovens interessados em trabalhar nas oficinas de São Francisco e Aramari, onde os ferroviários lidavam com a construção e com a manutenção das locomotivas, vagões e classes. A escola formou caldeireiros, metalúrgicos, torneiros mecânicos, eletricistas, soldadores e tornou-se referência em termos de ensino técnico–profissional. Dessa maneira, a VFFLB, além de contribuir com o crescimento econômico da cidade, permitiu ainda a elevação da qualidade de ensino. Na década de 1980, com a atividade ferroviária já em declínio, a Escola Profissional de Alagoinhas foi conveniada com o SENAI, mantendo os cursos profissionalizantes.
Prédio que sediou o Escritório Central de Alagoinhas e a Escola Profissional de Alagoinhas.
Antigo Escritório Central de Alagoinhas, construído entre 1880 e 1890. Após sua desativação, foi ocupado pela Escola Profissional de Alagoinhas, na década de 1940.
Fonte: Álbum da SR-7.
Acervo: FIGAM.
Causos
Fios da Memória
Em Alagoinhas, lá pros lados da Estação da Leste, havia uma menina chamada Nalva. Ela vivia grudada à avó, que levava um mundo de coisas na cabeça para vender. Enquanto a avó vendia, Nalva ficava por ali, espiando o movimento dos trens e dos trabalhadores da oficina.
Ela gostava muito das estopas, os fiapos coloridos que sobravam do serviço dos operários. Pedia um, pedia outro, e ia juntando. Depois fazia algo que ninguém lhe ensinou, aprendeu sozinha, fuçando e inventando moda: enfiava a linha na agulha com a maior paciência do mundo, desse processo saíam roupas de bonecas. E assim, costurando, ela passava toda a tarde na plataforma da estação. Com o tempo, foi pegando gosto e não parou mais. Hoje, Edinalva é costureira — daquelas que faz roupa que parece carinho. E tudo começou ali, entre os trilhos, o barulho dos trens e as estopas de fios coloridos que ela ainda costura em suas memórias.
Causo inspirado no relato de Maria Edinalva.
Mistério no Cangula
Antigamente lá em Igreja Nova, o povo dizia logo: “pra banda do Cangula, não vá!” E ninguém explicava o porquê. Só diziam que era perigoso, que era melhor nem passar por perto. O tempo passou e a história, sussurrada, um dia veio à tona.
Lá pelo fim dos anos 60, apareceu no Cangula um homem estranho, ninguém sabia de onde tinha vindo. Quando deram por si, o sujeito já estava morando por ali, no meio do mato, com uma casa levantada e tudo. Disse que era lavrador, mas nunca o tinham visto plantar nada. O Cangula era uma comunidade preta, afastada do centro, encravada no mato. E o tal homem destoava demais. Mesmo assim, foi ficando, calado, andando pelos cantos, e o povo acabou apelidando-o de Mané Beiço-mole — apelido advindo do jeito esquisito do homem que, depois de tomar umas cachaças, saía cuspindo pelos cantos.
Não imaginavam o que ele fazia de verdade — até que num certo dia, o Exército apareceu e cercou tudo. Procuravam um homem, outro nome, outra história. A comunidade não sabia de nada, mas a desconfiança levou os soldados até a casa do Mané.
Aí o mistério começou a se esclarecer: a casa não tinha móveis, nem ferramenta de roça. Só uma cama encostada no teto, onde dava para espiar tudo lá fora. Em cima da cama, um revólver e uma espingarda. Foi quando descobriram: Mané Beiço-mole era um agente ligado ao movimento comunista. Naquela época, o país vivia debaixo da repressão da ditadura, e qualquer ação organizada era perseguida com força.
Ele se escondia no Cangula por ser afastado e discreto, mas, toda noite, caminhava até a estação de trem, uns cinco quilômetros dali. Recebia pacotes que vinham do norte e do sul — jornais, panfletos, documentos e até dinheiro — e organizava o envio para outros lugares. Tudo de forma clandestina. Os ferroviários, muitos com ideias progressistas, ajudavam, passando o material de mão em mão, escondido nos trens.
Mas, quando o Exército chegou, o homem já tinha sumido. Ninguém sabe como ele soube da operação, desapareceu sem deixar rastro. A casa foi demolida e ficou o susto. Ficou também a fama: que Alagoinhas era ponto de passagem de resistência, e que a ferrovia era mais que trilho — era também caminho de ideias.
Causo inspirado no relato de Paulo Pinto.
As Duas Bitolas
Tudo começou lá atrás, quando o imperador mandou construir a primeira estrada de ferro da Bahia. O primeiro trecho era de Salvador até Alagoinhas. No dia 13 de fevereiro de 1863, o primeiro trem chegou aqui. A estação era onde hoje está aquele prédio perto da Loja Barreto. Muita gente chama o lugar de Barreto, mas ali era mesmo a estação — o primeiro prédio de Alagoinhas, que completou 161 anos.
Naquele tempo, o trem seguia uma bitola, que é o nome que se dá à distância entre um trilho e outro. Só que, para continuar até Juazeiro, não dava para usar a mesma linha. O governo abriu um novo edital, outro projeto ganhou e aí começaram uma nova ferrovia, saindo de Alagoinhas, mas com outra bitola — uma distância diferente entre os trilhos.
Essa segunda estação de passageiros foi inaugurada em 18 de novembro de 1880, e o trem passou por Aramari, Queimadas, Serrinha… Tudo parte de um novo caminho. E como a bitola era diferente, o trem de uma linha não rodava na outra. Tinha que fazer a troca.
Aí vem a parte curiosa: entre as duas oficinas ali perto da estação — a Oficina Arlindo Luz e a Oficina São Francisco — tem uma caixa-d’água antiga e, logo ali, uma subestação. No meio disso tudo, se você subir os degraus durante o dia, vai ver um guindaste velho, grandão, com uma marca: London. Aquele guindaste veio direto da Inglaterra, lá no século 19, só para fazer a transferência de carga de um trem para o outro. Porque, com bitolas diferentes, não dava para seguir direto.
As pessoas tinham que descer de um trem e subir no outro. Tinham que trocar todas as mercadorias. Por isso, a importância de preservar esse guindaste — ele conta uma história de adaptação, de como as coisas funcionavam naquele tempo. É por essas e outras que a gente diz que cada parafuso da ferrovia tem uma história guardada.
Causo inspirado no relato de Iraci Gama.
O Zíper Traiçoeiro
Zé ainda era adolescente, tinha uns 13 anos, naquela fase em que o menino se acha o tal, mas mal sabe fechar a calça direito. Em uma das viagens de estação para a estação, bateu aquela vontade urgente de ir ao banheiro. E banheiro de estação, como se sabe, era o que tinha — simples, mas resolvia.
Foi lá, fez o que precisava, tudo tranquilo. Mas na hora de guardar o “documento” e fechar o zíper… foi aí que a tragédia aconteceu. O fecho éclair, traiçoeiro, enganchou justo no couro da pintinha. Um grito ficou preso na garganta e bateu o desespero.
Zé tentou com jeitinho: puxava para um lado, puxava para o outro… nada. Chegou na estação sangrando, transtornado, e deu de cara com Edmilson — conhecido da turma antiga, o Edmilson da Telebahia. Baixinho, levado que só, olhou e disse: — “Rapaz, se vire, que o trem vai partir!”
Sem ter escolha, o trem prestes a sair e a vergonha batendo forte, Zé respirou fundo e puxou de vez. A dor subiu até o céu. Chegou em casa com o short ensanguentado, a mãe quase desmaiou: — “Menino, o que foi isso?!” E Zé, ali, segurando o choro, tentando explicar uma história que nem ele acreditava direito. Hoje é de contar rindo, mas na época… Vixe, Zé, que sofrimento!
Causo inspirado no relato de José Teixeira.
Voar de Trem
A família de Iron morava na Rua 15 de Novembro, bem pertinho da linha do trem. Foi ali que ele cresceu, entre maquinistas, condutores e outros vizinhos que também viviam da ferrovia. No fim da tarde, era comum a turma se reunir num barzinho para prosear. Como a casa de Iron era perto, e ele era uma criança “quietinha” (segundo a mãe), sempre que o pai saía, levava o menino junto.
Iron cresceu ouvindo aquelas histórias da linha, dos trens, das viagens e aventuras. E aquilo foi moldando seu imaginário. Até que um dia, já com seus sete ou oito anos, teve uma ideia maluca: voar de trem!
Juntou uns colegas da vizinhança e combinaram a brincadeira — correr por cima dos vagões em movimento, como se estivessem voando, planando no vento. A adrenalina era tanta que pareciam mesmo pássaros sobre trilhos. No começo, era só diversão, escondida dos adultos.
Mas, um dia foram pegos. Alguém viu, contou, e descobriram quem era filho de quem. Os pais foram chamados na hora. Iron lembra bem: a surra veio ali mesmo, embaixo do sol, sem nem ter direito à desculpa.
Ainda assim, não pararam. Continuaram a brincar, escondidos aqui e ali, até que o inevitável aconteceu. Um dos meninos caiu do trem e perdeu a perna. Aquilo parou todos. Foi um trauma que fez a brincadeira morrer de vez. Porque respeito ao trem é coisa séria. E Iron aprendeu isso muito bem.
Causo inspirado no relato de Iron Arthur
Você É de Aramari?
Aconteceu aqui em Alagoinhas uma greve histórica na ferrovia. A equipe da estação local parou os serviços e mandou a pauta de reivindicações para Salvador. O chefe da companhia veio pessoalmente investigar. Parou o trem executivo na própria linha, abriu a porta do vagão de diretoria e perguntou o que estava acontecendo. Os ferroviários estavam preparados, listaram tudo com clareza: salários, condições de trabalho e direitos.
Dias depois, Aramari também parou. O chefe foi até lá, seguiu o mesmo procedimento. Mas, quando perguntou os motivos da greve, os ferroviários se entreolharam, sem saber o que dizer. Tinham aderido em solidariedade, mas não sabiam os detalhes da pauta. O chefe então soltou a frase que virou causo e piada: “Vocês de Aramari não sabem o que querem!”
Desde então, toda vez que alguém demonstra dúvida ou desinformação, a pergunta vem em tom de brincadeira e memória: “Você é de Aramari?”