Divinópolis, moldada pela Estrada de Ferro Oeste de Minas, cresceu economicamente com a ferrovia. Seu legado cultural e identidade são fortemente ligados aos ferroviários.
Olá! Me chamo Dircinha Batista, cantora e atriz brasileira e que também embalava as músicas carnavalescas dos áureos tempos da Rádio Nacional.
Divinópolis foi destaque durante toda a história ferroviária brasileira. A estrutura, o ritmo de trabalho e a eficiência da cidade serviam de modelo para outras regiões. Abriga as maiores oficinas, consideradas por muitos como as melhores da América Latina. Com isso, ao longo dos anos, a cidade recebeu grande contingente populacional. Quando as oficinas da RMV em outras localidades fechavam, seus funcionários, majoritariamente, vinham com suas famílias para Divinópolis, que passou a ser reconhecida como “Cidade Hospitaleira”.
O fechamento da oficina de Cruzeiro do Sul (SP), na década de 1930, foi responsável por uma das maiores migrações a Divinópolis. A cidade passou a contar com cerca de mil trabalhadores nas oficinas da RMV vindos de Cruzeiro do Sul e diversas outras regiões. Locais como Lavras, São João del-Rei, Teófilo Otoni, Barra Mansa, Belo Horizonte, Três Corações, Machado, São Gonçalo do Sapucaí, Ibiá, Itajubá e Araxá também são constantemente citadas como morada anterior de muitos ferroviários, que hoje já se consideram divinopolitanos.
“Nossa! O que mais tem é gente de fora, inclusive, quando a linha Bahia-Minas foi extinta, aquele pessoal todo teve que escolher pra onde iria, ou foram transferidos, e a maioria veio pra cá, pra Divinópolis, por causa da oficina grande. Eu peguei muitas amizades, pessoal vindo de Santana, Santo Amaro, Brumado. Divinópolis é muito hospitaleira, totalmente diferente de outras cidades que eu já conheci. Então, nós conseguimos adaptar aqui muito facilmente, é muito tranquilo aqui.”
Depoimento do ferroviário aposentado Nilson Lucio Gonçalves de Matos.
Divinópolis estava cheia de pernilongos e malária?
Mesmo com a promessa de boas condições de trabalho e moradia, muitos ferroviários não animaram a sair de suas cidades para se mudar para Divinópolis. O motivo era a história que circulava pelos caminhos da ferrovia de que o município estaria infestado de escorpiões, malária e pernilongos, e que vir para cá seria doença na certa! A história da cidade de fato conta com alguns surtos e epidemias que atormentaram a rotina dos moradores e a questão da saúde dos ferroviários foi um desafio importante durante a trajetória da ferrovia. Alguns exemplos são as epidemias de varíola, em 1844, de Gripe Espanhola, em 1918, e de malária, em 1936. Grande parte dos ferroviários estava mais exposta a contrair a malária, por exemplo, por trabalhar na manutenção das estradas de ferro e ter amplo contato com focos da doença.
Já a famosa história dos pernilongos aconteceu na década de 1950. Devido ao crescimento intenso da cidade, fortaleceram-se as vendas de alimentos, incluindo as carnes de charque, que eram transportadas geralmente em carroças a céu aberto das fazendas até os açougues da cidade. Essa situação desencadeou uma infestação de pernilongos, que acompanhavam as carnes transportadas irregularmente. Os pernilongos se multiplicaram e esse cenário atormentou a vida dos moradores da cidade por alguns anos.
Povo da Estrada X Povo do Largo
Era de se esperar alguns conflitos entre quem chegava de fora para trabalhar na cidade e quem já era da região. Em Divinópolis, os trilhos do trem não trouxeram somente trabalhadores, mas novas ideologias, costumes e informações. Em meio a tantas diferenças, dois grandes grupos surgiram: o Povo da Estrada (aqueles forasteiros que chegavam ao arraial vindos de outros locais) e o Povo do Largo (os habitantes já instalados). O pessoal do Largo da Matriz era habituado a uma economia de subsistência e tinha modos de vida próprios e tradicionais, diferentes dos estilos de vida do Povo da Estrada, considerados por eles como sendo muito “liberais”. Diversos conflitos e embates entre esses grupos aconteceram ao longo dos anos.
A Vila Operária
Com tantas famílias chegando à cidade, a então Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM) precisou investir em moradias nas proximidades da estação. Assim, em 1916, foi inaugurada a Vila Operária. Localizada no atual bairro Esplanada, contava, inicialmente, com 33 casas, número esse que rapidamente aumentou. Posteriormente, as ruas da vila foram denominadas R, M e V, em alusão às iniciais da Rede Mineira de Viação (RMV), que substituiu a EFOM em 1931. Sua construção, desde os planejamentos iniciais, foi inspirada na cidade de Belo Horizonte e na reforma do Rio de Janeiro, assim como influenciada pela arquitetura de Paris. Diferentemente dos bairros planejados à época, que eram voltados para alguma igreja central, a Vila foi construída voltada às Oficinas da Rede, que seguem ativas. A Vila tinha uma lógica e uma organização próprias, extremamente arraigadas à ferrovia. Para se ter ideia, nem a polícia poderia adentrar a Vila sem permissão.
De olho nos operários
Se, por um lado, as infraestruturas de moradia dos operários representaram para eles uma melhoria de vida, por outro, a proximidade da Vila Operária às estações demonstrava com clareza as estratégias da RMV. No bairro, o espaço de trabalho se fundia ao de lazer. A companhia tinha maior controle de seus funcionários, conseguia observar suas rotinas de perto e demarcar certos comportamentos. As práticas eram muito militarizadas, os funcionários usavam uniformes padronizados e havia grande noção de hierarquia dentro das oficinas e fora delas. Mesmo em horários de folga, os ferroviários deveriam se levantar quando os chefes passavam. Nos horários livres, eram orientados a manter uma “conduta exemplar” e prezar por uma imagem de respeito que não “manchasse o nome da empresa”. Não era bem-visto, por exemplo, apresentar licença médica para se ausentar do trabalho e, menos ainda, participar de greves. Essas ações poderiam comprometer o crescimento profissional dos funcionários, além de os sujeitar a transferências e rebaixamentos.
Partido dos Machos X Partido das Fêmeas
A política e a religião estavam intrinsicamente conectadas à história dos ferroviários de Divinópolis na primeira metade do século XX e representaram uma das questões mais pertinentes do cotidiano de trabalho desses profissionais. Após a chegada da maçonaria e do protestantismo na cidade, tradicionalmente enraizada no catolicismo, as divergências religiosas começaram a surgir. Nesse período, existiam os chamados “Partido dos Machos”, relacionado ao Partido Republicano Mineiro, e “Partido das Fêmeas”. O primeiro era ligado à maçonaria e tinha forte apoio dos ferroviários. Foi liderado por diversos chefes de oficinas da RMV, o que coagia muitos dos trabalhadores a aderir ao partido. Há registros de perseguições e punições diretas a trabalhadores que não apoiavam essa corrente ideológica. Já o segundo partido, o das “fêmeas”, constituído principalmente pela ala católica da cidade, recebia apoio especialmente de padres e moradores do largo da Matriz e de regiões vizinhas. Nas eleições, as cédulas dos eleitores do Partido dos Machos eram colocadas em envelopes azuis e as do Partido das Fêmeas em envelopes rosas, reforçando estigmas sexistas.
Classe organizada: greves e mobilizações
Ser ferroviário, em muitos momentos históricos, garantia prestígio na cidade, por ser uma profissão de bons salários, admirada e desejada por muitos. No entanto, nem sempre foi assim. Durante muito tempo, as condições de trabalho eram precárias e os pagamentos, incertos, o que acarretou uma longa história de greves de ferroviários em Divinópolis.
A ferrovia enfrentou diversas crises financeiras, ainda mais por necessitar de constantes manutenções e inovações de grande custo. Salários atrasados e sem aumentos, ausência de benefícios, demissões e transferências sem justificativas, escassez de alimentos básicos na Cooperativa, disputas políticas e perseguições partidárias, falta de férias e longas jornadas de trabalho eram os problemas principais. A situação dos ferroviários só melhorou consideravelmente quando a ferrovia passou a ser gerida a nível federal. A partir daí, a profissão de ferroviário passou a ser muito estimada na cidade.
“Essas greves normalmente tinham motivo: pagamento atrasado. Igual aconteceu na época que eu tava trabalhando, recebia o pagamento do mês e passava um, dois, três meses sem receber pagamento. Então eram 90 dias com aquele único pagamento, muitos ferroviários passaram necessidade. (…) Com esses pagamentos atrasados, aconteceu caso até de desmaio dentro das oficinas, a pessoa desmaiou de fome.”
Depoimento de Antônio Ferreira de Castro.
“Divinópolis – 1916 – Os pioneiros, que foram um baluarte do progresso de nossa ferrovia. A cidade deve todo seu progresso, a nós ferroviários. Na foto, os meninos de 11 anos eram funcionários aprendizes, estão descalços, pois não tinham condições financeiras de comprar um par de sapatos. O primeiro da esquerda está vivo com 90 anos Sr. Otávio Ribeira da Silva. São quase todos descendentes de italianos e portugueses. Curiosidade observar que o chapéu era imprescindível.
Ivan Rodrigues de Oliveira – Ferroviário saudosistas, Divinópolis, 31 de julho de 1995. Tempos difíceis gratas recordações do passado.”
A greve em que até a polícia ajudou
Em 1899, os ferroviários se reuniram para reivindicar salários melhores. A greve durou pouco, mas teve ótimos resultados para os trabalhadores. A fim de chamar a atenção para o problema, os grevistas retiraram os trilhos da linha e algumas peças importantes das locomotivas, impedindo-as de funcionar. Foram duramente reprimidos pelos chefes, que solicitaram o apoio da polícia de Belo Horizonte. Ao chegarem em Divinópolis, os policiais se depararam com as condições trabalhistas dos ferroviários e, percebendo que se tratava de uma greve pacífica, se compadeceram. Não oprimiram os grevistas; pelo contrário, perceberam a situação precária em que os ferroviários se encontravam e mediaram conversas com os chefes locais para que as reivindicações dos trabalhadores fossem atendidas.
Mulheres mobilizadas
As greves estiveram presentes durante boa parte do século XX e de muitas delas participaram os ferroviários, mas não somente eles: suas famílias inteiras, mulheres e crianças. A participação das mulheres ganhou muito destaque. Elas passaram a ser organizadoras dos movimentos. Mobilizavam ferroviários, reuniam-se para discutir estratégias e criavam até “santinhos” – pequenos folhetos com orações que continham códigos para encontros. Entravam na linha de frente reprimindo trabalhadores que se recusavam a aderir ao movimento. A participação feminina tem muito destaque no ano de 1952, época em que a greve, que durou três dias, foi fortemente coibida pela força policial. Na maioria dos casos, a administração da ferrovia, especialmente a RMV, atendia às solicitações dos trabalhadores: aumentava os salários, mesmo que pouco, e pagava os meses atrasados. Contudo, sempre descontava os dias de greve e não demorava a atrasar os pagamentos novamente.
Leva e Traz, Brocas ou Puxas
Com a grande frequência das greves, as autoridades sempre estavam atentas a qualquer movimentação dentro das oficinas e nas ruas da cidade. Incentivavam os trabalhadores a denunciar colegas que aderissem ao movimento e ofereciam promoções a quem delatasse as futuras manifestações. Entre os ferroviários, aqueles que contassem aos chefes sobre as greves eram apelidados de “Leva e Traz”, “Os Puxas” ou “5ª Coluna”. Aqueles que não aderiam à greve eram chamados de “Brocas”. Importante mencionar a existência do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Belo Horizonte (STEFBH), importante órgão na história recente da ferrovia de Divinópolis enquanto entidade de representação dos trabalhadores.
“Na minha época, o sindicato se reunia na praça com alto-falantes pra anunciar a greve. A maioria dos trabalhadores participavam do movimento, só quem era Broca não participava.”
Depoimento do ferroviário aposentado Nilson Lucio Gonçalves de Matos.
Joana Vai Casar!
Em meio a tanta repressão, os grevistas elaboravam estratégias secretas para que somente os participantes entendessem. Por exemplo, para avisar que haveria uma greve, utilizavam os dizeres “Joana vai casar!” e completavam a frase com o dia e horário da manifestação.
Jornal “O Apito”
O Partido Comunista, fundado em 1922, foi um importante desencadeador de greves de ferroviários em Divinópolis. Outro fator relevante para a efervescência de lutas locais foi a vinda de trabalhadores de Cruzeiro do Sul (SP), que chegaram à cidade já com forte histórico de mobilização por direitos. O Partido Comunista criou em Divinópolis um comitê ferroviário para organizar e estimular a luta contra a exploração, os atrasos de pagamentos e a insegurança no trabalho. Criou a associação de ferroviários, o jornal “O Apito” – distribuído entre os trabalhadores para estimular a discussão sobre suas dificuldades – e o chamado “grupo dos onze”, organização revolucionária que tinha em seu quadro vários ferroviários.
O combate ao movimento por parte da EFOM era feito por meio do levantamento de bandeiras em defesa de Deus e da família e da difusão de ideais contrários aos preceitos comunistas, além da incitação ao medo entre os ferroviários com ameaças e perseguições de seus superiores.